quarta-feira, 11 de junho de 2008

O jornalismo na medida do possível

Por Sylvia Moretzsohn

O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.

O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.

Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.

"Guerra do Rio"

Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".

Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.

Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.

A falaciosa metáfora da guerra

Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.

"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.

Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.

Os riscos da infiltração

Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.

A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:
"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."

O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?

Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.

Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".
Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".

O apelo ao risco

Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".

Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".

A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.

Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.

A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.

Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.


(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa)
Sylvia Moretzsohn
Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

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