O jornalista e professor Eugênio Bucci publicou no Estadão de hoje o artigo Imprensa "de esquerda"? Imprensa "de direita", no qual afirma o fim da capacidade explicativa de tal distinção (aqui http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,imprensa-de-esquerda-imprensa-de-direita,1142927,0.htm
Como contraponto, coloco aqui um excerto (das páginas 124 a 129) de minha tese de doutorado O Jornalismo e a Construção da Hegemonia (aqui http://www.bocc.ubi.pt/pag/negrao-joao-jornalismo-construcao-hegemonia.pdf)
O governo Lula, que tinha acabado de
tomar posse, foi o ponto central da
cobertura que tanto a Folha de
S. Paulo quanto O Estado de S. Paulo fizeram do
Fórum Social
Mundial, em Porto Alegre, e do Fórum Econômico Mundial, em
Davos [realizados em 2003].
Embora isto seja defensável do ponto de vista jornalístico, foi
possível
perceber que seu enfoque excessivo implicou em inúmeras
lacunas no
acompanhamento de discussões e
atividades importantes ocorridas nos dois
fóruns. O descompasso
entre os eventos destacados nas agendas pelos dois jornais
e a
cobertura deles nas edições subsequentes mostra isso.
O assunto tematizado pelos dois
jornais, embora tenha havido em ambos a
preocupação com a criação
de vinhetas para identificar as editoriais especiais de
cobertura
dos encontros de Porto Alegre e de Davos, foi o governo brasileiro
recém
empossado. Esta relevância e acumulação – com o
consequente esvaziamento de
outros assuntos – pode ter provocado
efeitos de agenda setting, mas este estudo, por
suas limitações
(não foram feitos estudos de recepção), não tem como
aquilatá-los.
Ainda assim, pelo conjunto de enquadramentos, é
possível perceber uma
tendência a se valorizar positivamente o FEM
enquanto um encontro sério, que
discute problemas concretos e
aponta soluções realistas para graves problemas da
humanidade. De
outra parte, no caso do FSM, apesar de referências muitas vezes
positivas, no conjunto aparece como desligado dos problemas reais,
com projetos utópicos, bem intencionados, mas irrealizáveis, o que
tende a reforçar, ainda que
passivamente, ou seja, pela descrença
em alternativas, as bases da atual
configuração hegemônica.
A análise destes dados a partir de uma
grade formada pelas teorias do
jornalismo apresentadas no capítulo
3 mostra a insuficiência de algumas e as
possibilidades
explicativas de outras. A teoria do espelho é claramente incapaz de
explicá-los: os “fatos” estavam lá, ao alcance dos repórteres,
pauteiros e editores.
No entanto, não viraram notícias. Os
leitores da Folha e do Estadão acompanharam uma cobertura seletiva,
restrita e não puderam “formar” uma opinião a partir de
um
conjunto de informações objetivas e neutras, como reza a teoria do
espelho.
A ilusão positivista desta “teoria” é insustentável,
pois os fóruns, como
vimos, foram decompostos em diferentes
fragmentos – os eventos cobertos, os não
cobertos, mas que
apareceram nas agendas, e ainda os que nem nelas apareceram –
e
recompostos numa totalidade que, embora com elementos da realidade, é
uma
“edição” de tudo o que aconteceu nos encontros. Houve
necessariamente uma
seleção daquilo que do ponto de vista dos
repórteres, pauteiros, editores e veículos
era importante.
A teoria do gatekeeper pode contribuir
para o entendimento, desde que
saiamos de seu marco meramente
individual e entendamos o gatekeeping como um processo. Ainda assim,
ficam de fora os condicionantes sociais, ideológicos,
políticos,
organizacionais e cognitivos que levaram os distintos atores
(jornalistas)
envolvidos no processo a optar por esta cobertura e
não por outra.
Quem parece mais capaz de fornecer
explicações que possam dar conta do
fenômeno são as teorias
construcionistas, que trabalham a idéia de que a notícia é
uma
construção social, resultado de processos complexos entre diversos
atores
(jornalistas, fontes, concepções de mundo, forças sociais
e políticas organizadas,
etc.). Especialmente se agregarmos a elas
– como fazem Hall, Venício Lima e outros
– o conceito de
hegemonia desenvolvido por Gramsci, aliado à idéia do jornal
assumindo funções de partido político.
A Folha e o Estadão, enquanto
instituições e empresas capitalistas – apesar
das diferenças de
tom --, têm uma concepção de mundo e de país. São a favor,
manifestadamente, da propriedade privada dos meios de produção e
do
liberalismo político, da economia de mercado e de limites à
ação do Estado na
economia. Ambos defendem o processo democrático
– embora tenham estado ao
lado do golpe de 64 contra o governo
constitucional de Jango Goulart. Esta
concepção de mundo, numa
relação dialética, forma e reflete a do “público leitor”, com
quem os jornais alegam ter compromisso: um amplo setor de classe
média.
Neste sentido, é possível identificar
aqui, segundo a matriz gramsciana, uma
função de partido, qual
seja, dar forma a uma hegemonia, ajudar a classe
dominante
a
superar
seus
“momentos
egoísticos-passionais”
(corporativos/economicistas) e se universalizar, reforçando a
hegemonia dada.
No entanto, é importante lembrar que,
como o processo de hegemonia – e
ela sempre é um processo –
supõe levar em conta, até certo ponto, interesses de
outro grupos
sociais – e no caso dos aparelhos privados de hegemonia estes
interesses se mostram cristalizados em concepções de mundo --,
aparecem
manifestações contrahegemônicas, pois mesmo naquela
franja social à qual os
jornais, no Brasil, estão voltados, há
inúmeros leitores que se identificam com o
pensamento progressista
ou de esquerda, que querem ver no jornal. Então, até para
não
perder essa fatia de mercado consumidor de notícias, aparecem, ainda
que de
forma minoritária, manifestações de um pensamento
crítico.
Além disso, apesar dos mecanismos de
controle da redação cada vez mais
complexos e sofisticados, há
momentos em que as impressões do repórter – e estas impressões
se vinculam às suas concepções de mundo e, portanto, aos seus
mapas
cognitivos, que conformam uma ideologia que não
necessariamente será
coincidente, em todos os momentos, com a do
jornal – serão determinantes no
enquadramento da matéria.
Abre-se aí a possibilidade de manifestações contra
hegemônicas.
Deve-se também levar em conta a
existência, embora muitas vezes
meramente formal, do Código de
Ética dos Jornalistas Brasileiros. Entre outras
regras de conduta,
ele estabelece, no seu artigo primeiro, que “o acesso à
informação pública é um direito inerente à condução de vida em
sociedade, que
não pode ser impedido por nenhum tipo de
interesse”.
Mais à frente, o Código afirma também, no seu
artigo segundo, que “a
divulgação de informação, precisa e
correta, é dever dos meios de comunicação
pública, independente
da natureza de sua propriedade” e, no artigo décimo, item
c, que
o jornalista não pode “frustrar a manifestação de opiniões
divergentes ou
impedir o livre debate”
Então, temos que o jornal, embora seja
uma empresa capitalista, é também
uma instituição – ao lado de
outras, como a escola, a fábrica, o Estado, etc. -- onde
se instala
uma luta simbólica entre uma hegemonia dada, majoritária, e uma
contra-hegemonia em gestação, ainda minoritária, mas que aspira
constituir-se
numa nova hegemonia, articulando um outro bloco
histórico.
Isto explica certos aspectos
contraditórios identificados na cobertura dos
fóruns, como, por
exemplo – entre outros --, a edição do Estadão de 23/01/03:
enquanto o editorial
considera o FSM vinculado à destruição e à
desordem, a
primeira página do caderno especial tem forte apelo
pró-FSM. E
também, como qualquer empresa, o jornal é palco de
conflitos entre patrões e
empregados pela apropriação da renda
ali produzida, colocando-os, em vários
momentos, em lados
distintos.
Há ainda mais um elemento fundamental
a reforçar a idéia do jornal como
locus de conflito de hegemonias,
como o que se dá no interior de outros aparelhos
privados de
hegemonia, como a escola: apesar da crítica à objetividade
proposta
pela teoria do espelho, não se pode esquecer que o
jornalismo tem como referente
fundamental a realidade; ele não é
ficção.
Então, por mais que o veículo opte –
pelas mais variadas razões – por não
cobrir certas manifestações
da realidade, ela está ali, foi experimentada socialmente
por um
determinado número de indivíduos e, de diferentes maneiras,
pressiona o
jornalismo a torná-la conhecida. Exemplo clássico
dessa possibilidade no Brasil é o
desconhecimento a que a Rede
Globo relegou, inicialmente, o movimento pelas
diretas. Foi a
pressão popular – aliada à importância que outros veículos
deram ao
assunto – que levou a emissora a mudar sua posição
inicial e passar a cobrir aquele
movimento.
Assim, pensar o jornal como aparelho
privado de hegemonia e, portanto,
necessariamente, como espaço de
conflitos e de luta simbólica, aliado à concepção
de sua “função
de partido político”— mais do que a ideia de manipulação pura
e
simples ou mentira – tem o condão de permitir um entendimento
mais complexo
do fenômeno da comunicação jornalística
contemporânea e seu entrelaçamento
inescapável com a política.