sexta-feira, 21 de março de 2014

Esquerda e Direita disputam a hegemonia também no jornalismo

O jornalista e professor Eugênio Bucci publicou no Estadão de hoje o artigo Imprensa "de esquerda"? Imprensa "de direita", no qual afirma o fim da capacidade explicativa de tal distinção (aqui http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,imprensa-de-esquerda-imprensa-de-direita,1142927,0.htm
Como contraponto, coloco aqui um excerto (das páginas 124 a 129) de minha tese de doutorado O Jornalismo e a Construção da Hegemonia (aqui http://www.bocc.ubi.pt/pag/negrao-joao-jornalismo-construcao-hegemonia.pdf)


O governo Lula, que tinha acabado de tomar posse, foi o ponto central da cobertura que tanto a Folha de S. Paulo quanto O Estado de S. Paulo fizeram do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e do Fórum Econômico Mundial, em Davos [realizados em 2003]. Embora isto seja defensável do ponto de vista jornalístico, foi possível perceber que seu enfoque excessivo implicou em inúmeras lacunas no
acompanhamento de discussões e atividades importantes ocorridas nos dois fóruns. O descompasso entre os eventos destacados nas agendas pelos dois jornais e a cobertura deles nas edições subsequentes mostra isso.

O assunto tematizado pelos dois jornais, embora tenha havido em ambos a preocupação com a criação de vinhetas para identificar as editoriais especiais de cobertura dos encontros de Porto Alegre e de Davos, foi o governo brasileiro recém empossado. Esta relevância e acumulação – com o consequente esvaziamento de outros assuntos – pode ter provocado efeitos de agenda setting, mas este estudo, por suas limitações (não foram feitos estudos de recepção), não tem como aquilatá-los. Ainda assim, pelo conjunto de enquadramentos, é possível perceber uma tendência a se valorizar positivamente o FEM enquanto um encontro sério, que discute problemas concretos e aponta soluções realistas para graves problemas da humanidade. De outra parte, no caso do FSM, apesar de referências muitas vezes positivas, no conjunto aparece como desligado dos problemas reais, com projetos utópicos, bem intencionados, mas irrealizáveis, o que tende a reforçar, ainda que passivamente, ou seja, pela descrença em alternativas, as bases da atual configuração hegemônica.

A análise destes dados a partir de uma grade formada pelas teorias do jornalismo apresentadas no capítulo 3 mostra a insuficiência de algumas e as possibilidades explicativas de outras. A teoria do espelho é claramente incapaz de explicá-los: os “fatos” estavam lá, ao alcance dos repórteres, pauteiros e editores. No entanto, não viraram notícias. Os leitores da Folha e do Estadão acompanharam uma cobertura seletiva, restrita e não puderam “formar” uma opinião a partir de um conjunto de informações objetivas e neutras, como reza a teoria do espelho. A ilusão positivista desta “teoria” é insustentável, pois os fóruns, como vimos, foram decompostos em diferentes fragmentos – os eventos cobertos, os não cobertos, mas que apareceram nas agendas, e ainda os que nem nelas apareceram – e recompostos numa totalidade que, embora com elementos da realidade, é uma “edição” de tudo o que aconteceu nos encontros. Houve necessariamente uma seleção daquilo que do ponto de vista dos repórteres, pauteiros, editores e veículos era importante.

A teoria do gatekeeper pode contribuir para o entendimento, desde que saiamos de seu marco meramente individual e entendamos o gatekeeping como um processo. Ainda assim, ficam de fora os condicionantes sociais, ideológicos, políticos, organizacionais e cognitivos que levaram os distintos atores (jornalistas) envolvidos no processo a optar por esta cobertura e não por outra.
Quem parece mais capaz de fornecer explicações que possam dar conta do fenômeno são as teorias construcionistas, que trabalham a idéia de que a notícia é uma construção social, resultado de processos complexos entre diversos atores (jornalistas, fontes, concepções de mundo, forças sociais e políticas organizadas, etc.). Especialmente se agregarmos a elas – como fazem Hall, Venício Lima e outros – o conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci, aliado à idéia do jornal assumindo funções de partido político.

A Folha e o Estadão, enquanto instituições e empresas capitalistas – apesar das diferenças de tom --, têm uma concepção de mundo e de país. São a favor, manifestadamente, da propriedade privada dos meios de produção e do liberalismo político, da economia de mercado e de limites à ação do Estado na economia. Ambos defendem o processo democrático – embora tenham estado ao lado do golpe de 64 contra o governo constitucional de Jango Goulart. Esta concepção de mundo, numa relação dialética, forma e reflete a do “público leitor”, com quem os jornais alegam ter compromisso: um amplo setor de classe média.

Neste sentido, é possível identificar aqui, segundo a matriz gramsciana, uma função de partido, qual seja, dar forma a uma hegemonia, ajudar a classe dominante a superar seus “momentos egoísticos-passionais” (corporativos/economicistas) e se universalizar, reforçando a hegemonia dada.

No entanto, é importante lembrar que, como o processo de hegemonia – e ela sempre é um processo – supõe levar em conta, até certo ponto, interesses de outro grupos sociais – e no caso dos aparelhos privados de hegemonia estes interesses se mostram cristalizados em concepções de mundo --, aparecem manifestações contrahegemônicas, pois mesmo naquela franja social à qual os jornais, no Brasil, estão voltados, há inúmeros leitores que se identificam com o pensamento progressista ou de esquerda, que querem ver no jornal. Então, até para não perder essa fatia de mercado consumidor de notícias, aparecem, ainda que de forma minoritária, manifestações de um pensamento crítico.

Além disso, apesar dos mecanismos de controle da redação cada vez mais complexos e sofisticados, há momentos em que as impressões do repórter – e estas impressões se vinculam às suas concepções de mundo e, portanto, aos seus mapas cognitivos, que conformam uma ideologia que não necessariamente será coincidente, em todos os momentos, com a do jornal – serão determinantes no enquadramento da matéria. Abre-se aí a possibilidade de manifestações contra hegemônicas.

Deve-se também levar em conta a existência, embora muitas vezes meramente formal, do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Entre outras regras de conduta, ele estabelece, no seu artigo primeiro, que “o acesso à informação pública é um direito inerente à condução de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse”. Mais à frente, o Código afirma também, no seu artigo segundo, que “a divulgação de informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independente da natureza de sua propriedade” e, no artigo décimo, item c, que o jornalista não pode “frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate”
Então, temos que o jornal, embora seja uma empresa capitalista, é também uma instituição – ao lado de outras, como a escola, a fábrica, o Estado, etc. -- onde se instala uma luta simbólica entre uma hegemonia dada, majoritária, e uma contra-hegemonia em gestação, ainda minoritária, mas que aspira constituir-se numa nova hegemonia, articulando um outro bloco histórico.

Isto explica certos aspectos contraditórios identificados na cobertura dos fóruns, como, por exemplo – entre outros --, a edição do Estadão de 23/01/03: enquanto o editorial considera o FSM vinculado à destruição e à desordem, a primeira página do caderno especial tem forte apelo pró-FSM. E também, como qualquer empresa, o jornal é palco de conflitos entre patrões e empregados pela apropriação da renda ali produzida, colocando-os, em vários momentos, em lados distintos.

Há ainda mais um elemento fundamental a reforçar a idéia do jornal como locus de conflito de hegemonias, como o que se dá no interior de outros aparelhos privados de hegemonia, como a escola: apesar da crítica à objetividade proposta pela teoria do espelho, não se pode esquecer que o jornalismo tem como referente fundamental a realidade; ele não é ficção.

Então, por mais que o veículo opte – pelas mais variadas razões – por não cobrir certas manifestações da realidade, ela está ali, foi experimentada socialmente por um determinado número de indivíduos e, de diferentes maneiras, pressiona o jornalismo a torná-la conhecida. Exemplo clássico dessa possibilidade no Brasil é o desconhecimento a que a Rede Globo relegou, inicialmente, o movimento pelas diretas. Foi a pressão popular – aliada à importância que outros veículos deram ao assunto – que levou a emissora a mudar sua posição inicial e passar a cobrir aquele movimento.

Assim, pensar o jornal como aparelho privado de hegemonia e, portanto, necessariamente, como espaço de conflitos e de luta simbólica, aliado à concepção de sua “função de partido político”— mais do que a ideia de manipulação pura e simples ou mentira – tem o condão de permitir um entendimento mais complexo do fenômeno da comunicação jornalística contemporânea e seu entrelaçamento inescapável com a política.