quarta-feira, 29 de julho de 2009

Conferência de Comunicação

Por João José de Oliveira Negrão

Entre 1 e 3 de dezembro acontecerá, em Brasília, a primeira Conferência Nacional de Comunicação. Decreto convocando o evento foi assinado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril deste ano. O eixo central da conferência será Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital. Os temas a serem debatidos são inúmeros. Entre outros, estarão em discussão as concessões dos canais de rádio e TV, universalização do acesso às telecomunicações, internet, políticas públicas de democratização das comunicações, regionalização de conteúdos e convergência das mídias.

Uma questão que certamente será uma das mais polêmicas é a propriedade cruzada dos veículos de comunicação. Em alguns países – democráticos e capitalistas, destaque-se – é vedado ao mesmo grupo econômico ser proprietário, na mesma cidade ou região, de canais de rádio e tevê, jornais e revistas. Isso não acontece no Brasil, cujos meios são praticamente oligopolizados por cerca de dez famílias, que lideram organizações donas de todos os tipos de veículos.

O setor empresarial do ramo tem boicotado o processo. Na última reunião da comissão organizadora da Conferência, realizada dia 22 passado para definir o regulamento do encontro nacional e dos encontros locais e estaduais que o antecedem, nenhum representante das empresas compareceu. A reunião foi adiada para amanhã, quando deverá ser, finalmente, decidido o regimento das conferências.

Em Sorocaba, representantes dos sindicatos dos jornalistas, de outras categorias de trabalhadores e de cursos universitários da área começaram a se reunir para organizar um encontro regional, prévio ao nacional. A participação será aberta ao setor público, à sociedade civil e aos empresários do setor.

(Publicado no Bom Dia de 27/07/09)

domingo, 19 de julho de 2009

Notícia: fato e construção social

Por João José de Oliveira Negrão

(Publicado na revista Comunicarte, v. 25, n. 31, 2005, pp. 59 - 79, do Centro de Linguagem e Comunicação da PUC Campinas)

Resumo
Tendo por base a obra do pesquisador português do jornalismo Nelson Traquina, o artigo procura elencar as diferentes possibilidades explicativas construídas ao longo da História que tentam responder à questão: o que define a notícia.

Palavras-chave
Jornalismo. Notícia. Construção social.

Abstract
Beased on the work of the Portuguese reseacher in journalism, Nelson Traquina, this article searches to list the different explanatory possibilities made during History and that try to answer the question: what defines the news.

Key words
Journalism. News. Social construction

Introdução

O que define a notícia? Por que certos fatos transformam-se em acontecimentos noticiáveis e, portanto, são dados à existência pública e social enquanto outros, ao não se beneficiarem desta possibilidade, são relegados ao desconhecimento? Que critérios presidem a seleção, entre as incontáveis ocorrências diárias no âmbito da humanidade, daquelas que terão a sorte de aparecer em letras de forma ou na tela da TV? Serão eles ‘claros e distintos’ o suficiente para evitar a subjetividade nesta escolha?

Já faz parte do folclore jornalístico o jogo de palavras de Amus Cummings. Para ele, “se um cachorro morde um homem, não é notícia; mas se um homem morde um cachorro, aí, então, é notícia e sensacional”. Fraser Bond, em sua Introdução ao jornalismo, cuja primeira edição é de 1954, afirma que o que determina o valor da notícia são a oportunidade, a proximidade, o tamanho (o muito pequeno e o muito grande são atraentes) e a importância. John Hohenberg, no seu Manual de jornalismo, aponta as características da notícia: precisão, interesse, atualidade e explicação, enquanto Luiz Amaral, em Técnicas de jornal e periódico, oferece os seguintes atributos da notícia: atualidade, veracidade, interesse humano, raio de influência, raridade, curiosidade e proximidade 1.

Em linha semelhante, um dos mais utilizados manuais nos cursos de jornalismo brasileiros, o Técnicas de Codificação em Jornalismo, do jornalista e professor Mário Erbolato, apresenta 24 características da notícia: proximidade, marco geográfico, impacto, proeminência, aventura, conseqüências, humor, raridade, progresso, sexo e idade, interesse pessoal, interesse humano, importância, rivalidade, utilidade, política editorial do jornal, oportunidade, dinheiro, expectativa, originalidade, culto de heróis, descobertas e invenções, repercussão, confidências.

O Novo manual de redação, da Folha de S. Paulo, no verbete “importância da notícia” afirma:


critérios elementares para definir a importância de uma notícia: a)
ineditismo (a notícia inédita é mais importante do que a já publicada); b)
improbabilidade (a notícia menos provável é mais importante do que a esperada);
c) interesse (quanto mais pessoas possam ter sua vida afetada pela notícia, mais
importante ela é); d) apelo (quanto maior a curiosidade que a notícia possa
despertar, mais importante ela é); e) empatia (quanto mais pessoas puderem se
identificar com o personagem e a situação da notícia, mais importante ela é. Ao
levar em consideração esses critérios, não esqueça que as reportagens da Folha
devem atender às necessidades de informação de seus leitores, que formam um
grupo particular dentro da sociedade). Esses interesses mudam e o jornal
participa de modo ativo desse processo.


Estas ‘receitas’ podem até ser de alguma valia – muito relativa, por sinal – para repórteres iniciantes, mas não esclarecem as questões que abrem este texto.

As teorias da notícia

Ao longo do século XX, conforme Traquina, desenvolveram-se diferentes teorias da notícia, na busca daquelas respostas. Sigo aqui a nomenclatura da compilação feita pelo pesquisador português, que destaca, para o caso, que o uso do conceito teoria é impreciso, porque pode significar “somente uma explicação interessante e plausível e não um conjunto elaborado e interligado de princípios e proposições” (TRAQUINA, 2001, p. 65). Trabalhando sobre este mesmo tema e também tendo por base a obra de Nelson Traquina, o pesquisador brasileiro Alfredo Vizeu preferiu chamá-las de “teorias intermediárias” (VIZEU, 2003, p. 1).

A teoria do espelho

A base desta tentativa de explicação é a idéia de que o produto do jornalismo é um retrato fiel da realidade. Quer dizer, as notícias são determinadas, sem mediações, pela realidade concreta, sendo impregnadas pelo conceito de objetividade, que demarca com muita força a auto-imagem dos jornalistas, constituindo, conforme Traquina (2001, p. 65), “a ideologia dominante no campo jornalístico”.

Nesta visão, o jornalista é um observador cauteloso, que relata com isenção, equilíbrio, de maneira objetiva, o que aconteceu, sem emitir ou sequer deixar transparecer opiniões e impressões pessoais. Os fatos falam por si mesmos e o jornalismo simplesmente intermedeia – sem interferências de qualquer tipo – os acontecimentos e sua tomada de consciência por um público mais amplo do que aquele que, eventualmente, teve a oportunidade de presenciar seu desenrolar. Naquele que, segundo o editor Folco Masucci, “é o primeiro livro didático de ‘Técnica de Jornal’ editado no país” – A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário, de 1969 --, o jornalista, professor e pesquisador de comunicação Luiz Beltrão afirma que


a notícia é o relato de um fato, de uma idéia ou de uma situação
que esteja, no momento, atuando no seio da comunidade a que o jornalismo serve.
Por isso mesmo, a informação jornalística deve ser impessoal, no sentido de que
a participação de quem a transmite ao público é puramente mecânica. O
jornalista, aqui, apenas recolhe e narra os fatos [...] os fatos são sagrados;
só o comentário é que é livre. Ora, a notícia, que é um registro fiel do fato,
deve ser tão sagrada e inviolável, tão inalterável como o próprio fato. [...] o
noticiarista comum [...] deve cuidar de que a notícia reflita o acontecimento
tal como sucedeu, deixando a outrem e ao leitor a tarefa de chegar, por sua
conta e risco, às próprias conclusões (BELTRÃO, 1969, p. 107).


Herdeira direta do positivismo, a teoria do espelho, com seu corolário de objetividade jornalística, veio substituir a concepção historicamente anterior do jornalismo como arma política e do jornalista como militante de causas partidárias. Há motivos históricos que demarcam esta passagem. Entre elas, a transformação paulatina dos jornais em empresas capitalistas, voltadas à racionalização e ao lucro. Amaral (1996, p. 26) identifica nos primeiros trinta anos do século XIX na Inglaterra, França e Estados Unidos esta passagem de uma imprensa partidarizada – quando, segundo ele, “comprava-se jornal para se ler as críticas aos adversários, quase sempre pessoais, procedentes ou não” – para uma imprensa comercializada. Ele destaca que


a partir de então, a objetividade, ou melhor, aquilo que mais tarde
ganharia o nome de objetividade, passa a se identificar com uma mistura de
estilo direto, imparcialidade, fatualidade, isenção, neutralidade,
distanciamento, alheamento em relação a valores e ideologia. Quer dizer que, em
sua tarefa diária, o jornalista precisaria deixar em casa suas normas,
princípios, referências políticas e ideológicas, procurar excluí-los do
pensamento e se concentrar na narração dos fatos, sem tentar explicá-los ou
comentá-los
2 (AMARAL, 1996, p.
26).


Há de se relevar o papel que as agências noticiosas tiveram na construção deste novo jornalismo, no quadro da emergência das redes de comunicação global, marcada, conforme Thompson (1998, p. 137-143), por três desenvolvimentos-chave no final do século XIX e início do XX: 1) cabos submarinos; 2) agências internacionais de notícias; e 3) organizações internacionais para a distribuição das freqüências no espectro eletromagnético.

O telégrafo, primeiro meio a explorar a eletricidade, teve experimentos desde o final do século XVIII. O de maior sucesso foi o de Morse, que usava o sistema traço-ponto. Em 1843 Morse constrói a primeira linha regular, entre Washington e Baltimore. A base técnica de circulação da mensagem telegráfica era a fiação elétrica, o que limitava sua expansão.

Entretanto, em 1851-2 são instalados os primeiros cabos submarinos ao longo do Canal da Mancha e entre Inglaterra e Irlanda, o que permitiu que as mensagens já não ficassem limitadas ao continente. Em 1870, cabos ligavam a Europa à China e à Austrália. Em 1900, 306 mil quilômetros de cabos submarinos estavam instalados ao redor do mundo. 72% deles eram de firmas inglesas, a maioria da Eastern and Associated Companies. Surgia o primeiro sistema global de comunicação.

As agências internacionais de notícias foram grandes beneficiárias do desenvolvimento do telégrafo via cabo submarino. A primeira havia sido criada por Charles Havas, em Paris, em 1835. Inicialmente, ela coletava informações de diferentes jornais europeus e as entregava diariamente à imprensa francesa. Em 1840, começou a fornecer notícias para clientes em Londres e Bruxelas, por meio de carruagens e um serviço regular de pombos-correio. Pouco mais tarde, em 1849, Bernard Wolff cria uma agência em Berlim e Paul Julius Reuter, em 1851, cria outra em Londres.

Em 1869, com o Tratado das Agências Aliadas, as três dividiram entre si suas áreas geográficas de atuação. Cada uma trabalhava estreitamente ligada às elites políticas e comerciais das nações que lhes serviam de sede. Depois da I Guerra, este cartel foi fortemente impactado pelo crescimento de duas agências norte-americanas, a Associated Press (AP) e a United Press Association (UPA), mais tarde transformada em United Press International (UPI).

Os primeiros clientes das agências foram governos, banqueiros e negociantes. Logo, passariam também a atender os jornais. Para Amaral


como os clientes antigos e novos representavam diferentes segmentos
da população, as agências, beneficiadas e, ao mesmo tempo, cobradas pelas novas
realidades, foram obrigadas a manter um certo grau de imparcialidade. Impôs-se a
confecção de um noticiário equilibrado, de forma a contemplar todos os lados da
questão [pois] era preciso então que elas oferecessem um produto capaz de
atender às necessidades específicas de cada cliente, refletindo o caráter social
do mercado e levando em conta seus interesses, valores e preconceitos. Passaram
a vender notícias uniformes, neutras e imparciais a jornais politicamente
diversos. Daí a adoção do conceito que mais tarde seria chamado de objetividade
e que alguns autores creditam especificamente à Associated Press (AMARAL, 1996,
p. 28)


Era o início do que Barros Filho (1995) vai chamar de objetividade como “uma estratégia de legitimação de um tipo de produto dentro de um campo jornalístico em formação”. De um lado, o jornalismo do passado: ‘sensacionalista’, ‘marrom’, panfletário. De outro, o jornalismo moderno, imparcial, objetivo 3.

As técnicas jornalísticas acompanham a mudança. É deste período o surgimento do lide e da “pirâmide invertida”, forma de construção da notícia que consiste em, já no primeiro parágrafo, responder às seis perguntas clássicas: quem, que, quando, onde, como e por que. Até hoje hegemônica, esta técnica permite, ao menos em tese, que o leitor possa inteirar-se dos fatos ao ler os primeiros parágrafos da notícia, ainda que numa visão mais panorâmica.

O processo industrial de confecção dos jornais também foi beneficiado pela ‘pirâmide invertida’ pois, em caso de necessidade, as matérias jornalísticas poderiam ter seus últimos parágrafos suprimidos (cortar pelo pé da matéria, no jargão jornalístico) com menor prejuízo para a informação. Barros Filho (op. cit.) lembra que a transmissão das notícias das agências pelo telégrafo também levou a uma certa hierarquização das informações na construção do texto noticioso: caso o serviço fosse interrompido – o que não era muito raro – a parte da notícia já enviada teria utilidade na produção dos diários e dos jornais radiofônicos.

A ideologia da objetividade, ao lado da metáfora do espelho, apesar das polêmicas e controvérsias, é ainda marcante no jornalismo contemporâneo. Autores como Barros Filho, Traquina, Sousa e outros a vêem como o eixo de legitimação do campo jornalístico, envolvendo jornalistas e proprietários dos meios de comunicação, que poderiam ter sua credibilidade arranhada caso deixassem de ser vistos como simples mediadores que reproduzem o acontecimento na notícia.

A teoria do gatekeeper

David Manning White, em 1950, publicou no Journalism Quarterly o artigo O gatekeeper: uma análise de caso na seleção de notícias 4. Nele, buscou aplicar ao jornalismo uma idéia desenvolvida pelo psicólogo Kurt Lewin a respeito de uma pessoa ou um grupo que toma decisão numa seqüência de decisões. Sinteticamente, na teoria do gatekeeper entende-se que o processo de produção da notícia se dá a partir de uma série sucessiva de escolhas, na qual determinada informação tem de passar por diversos portões (gates) – áreas de decisão onde os jornalistas (gatekeepers) selecionam ou não esta informação. Em caso positivo, a informação segue em frente; senão, interrompe-se sua progressão, o que significa que ela não virará notícia publicada.

O artigo de White tem por base a figura de Mr. Gates, jornalista de 40 anos, 25 de experiência no jornalismo, onde começou como revisor. No momento da pesquisa, era o editor do material enviado pelas agências Associated Press, United Press e International Press Service num jornal médio (30 mil exemplares) de uma cidade do meio-oeste norte-americano. A pedido do pesquisador, o jornalista anotou durante uma semana, de 6 a 13 de fevereiro de 1949, nos próprios despachos das agências, os motivos que o levaram a rejeitá-los. No final deste período, ‘Mr. Gates’ recebera 31496 centímetros de coluna de material das agências e utilizara apenas 3294 centímetros de coluna, cerca de 10% do total.

White conclui que o processo de seleção de notícias é subjetivo e arbitrário, porque “muitas das razões que o ‘Mr. Gates’ apresenta para a rejeição das notícias caem na categoria de juízos de valor muito subjetivos”, pois é
somente quando analisamos as razões apresentadas pelo ‘Mr. Gates’ para a rejeição de quase nove décimos das notícias (na sua procura do décimo para o qual tem espaço) que começamos a compreender como a comunicação de ‘notícias’ é extremamente subjetiva e dependente dos juízos de valor do gatekeeper (WHITE. In TRAQUINA, 1999, p. 145).
As notícias são então explicadas como resultado da ação de pessoas e de suas intenções. Para os críticos, esta é sua insuficiência. Traquina (2001, p. 70), por exemplo, a critica por sua abordagem microssociológica, ao nível individual, descartando outros fatores. No mesmo sentido, Kunczik (1997, p. 239) ressalta que a incapacidade explicativa dos estudos individualistas se dá porque eles passam por alto os condicionantes sociais do comportamento do ‘seletor de notícias’.

Sousa, no entanto – embora perceba as lacunas da teoria do gatekeeper apresentada por White – destaca um risco que pode estar embutido nas críticas: perder de vista que a ação pessoal do jornalista é também um dos condicionantes do processo. Destaca ainda que estudos recentes demonstram que o que ele chama de “fatores ambientais” ou “ecossistemáticos”, como os prazos de fechamento, o espaço ou tempo disponível, as políticas organizacionais dos jornais, o meio cultural, social, econômico e político desempenham papel importante na construção das notícias.

No entanto, afirma, é necessário notar que
a ênfase recente nos fatores “ecossistemáticos” teve, por conseqüência, algum alheamento da comunidade acadêmica em relação “ao que vai na mente” dos jornalistas, nomeadamente no campo do papel das cognições dos jornalistas para a construção das notícias, isto é, um certo alheamento para a forma como a “mente” ajuda a construir as notícias, que é um aspecto de ação pessoal conformativa das notícias, porventura tão importante como o campo das intenções, crenças, valores e expectativas individuais de cada jornalista (SOUSA, 2002, p. 40).
Esta estrutura, segundo ele, leva os jornalistas, submetidos à pressão do tempo e a uma quantidade enorme de informações, a construírem rotinas cognitivas para organizá-las. Assim, ao valer-se de formas rotinizadas e estereotipadas de pensamento, o jornalista tende a fabricar informação padronizada e a “selecionar sempre como tendo valor noticioso o mesmo tipo de acontecimentos”.

Ele conclui que, embora mescladas a outras forças, as notícias sempre têm algo da ação pessoal de quem as produz. Assim, a crítica à insuficiência da teoria do gatekeeper não deve levar ao completo abandono teórico do papel individual do jornalista – assim como o das fontes – na constituição da notícia.

A teoria organizacional

Fugindo do recorte individualista presente na teoria do gatekeeper e ampliando a perspectiva para um nível mais macrossociológico, Warren Breed publica em 1955 o artigo Controle social da redação: uma análise funcional 5. O foco passa a ser a empresa jornalística e os processos de socialização que ela promove junto aos jornalistas, levando à conformação com a política editorial da organização.

A partir de “entrevistas intensivas com cerca de 120 jornalistas, principalmente da zona nordeste dos Estados Unidos”, de jornais com tiragens diárias entre 10.000 e 100.000 exemplares, Breed destaca os constrangimentos que a organização provoca sobre a atividade do repórter.

Para isso, é fundamental o processo de socialização pelo qual passa o jornalista novato dentro da organização, pois
todos, com exceção dos novos, sabem qual é a política editorial. Quando interrogados, respondem que a aprendem “por osmose”. Em termos sociológicos, isto significa que se socializam e “aprendem as regras” como um neófito numa subcultura. Basicamente, a aprendizagem da política editorial é um processo através do qual o novato descobre e interioriza os direitos e as obrigações do seu estatuto, bem como as suas normas e valores. Aprende a antever aquilo que se espera dele, a fim de obter recompensas e evitar penalidades. A orientação política é um elemento importante das normas da redação, e é aí que ele a apreende. (BREED. In TRAQUINA, 1999, p. 155).
Tal processo, conforme Breed, compõe-se de seis fatores que promovem o conformismo à política editorial do veículo: 1) a autoridade institucional e as sanções, ou seja, a atribuição de tarefas (matérias e coberturas mais ou menos nobres), cortes, reescrita e localização dos textos, assinatura ou não da matéria, etc; 2) os sentimentos de obrigação e de estima com os superiores, ou seja, admiração e respeito pelos mais experientes e conhecidos, gratidão pela eventual ajuda, etc; 3) as aspirações de mobilidade, pois indispor-se com a política editorial do jornal pode criar obstáculos aos avanços na carreira e à assunção de postos de relevo; 4) ausência de grupos de lealdade em conflito, já que, em sua pesquisa, Breed não identificou, por exemplo, força nas organizações sindicais para influir neste processo; 5) o prazer da atividade, uma vez que os jornalistas gostam de seu trabalho, há tarefas interessantes e um ambiente de camaradagem nas redações; e 6) a notícia como um valor, pois a busca pela notícia é uma preocupação constante (costuma-se dizer que jornalista é jornalista 24 horas por dia). Este interesse comum pela notícia é capaz de cimentar a harmonia entre jornalistas e direção.

Para Breed,
os seis factores promovem o conformismo com a política editorial do jornal. [...] No entanto, o processo poderá ser um pouco melhor entendido com a introdução de mais um conceito – o grupo de referência. O staffer [jornalista empregado], em especial o novato, identifica-se a si próprio, através da existência destes seis factores, com os executivos e com os staffers veteranos. Se bem que ainda não seja um deles, ele partilha as normas deles, e assim a sua actuação vem a parecer-se com a dos outros. Ele conforma-se mais com as normas da política editorial do que com quaisquer crenças pessoais que ele tivesse trazido consigo, ou com ideais éticos. (BREED. In TRAQUINA, 1999, p. 160).
No entanto, ele destaca, há possibilidades e momentos de fuga deste controle. Há fatores, no nível decisório do jornalista, que contribuem para isso, como: a) a falta de clareza e de estruturação das normas da política editorial; b) o jornalista, em muitos pontos, tem a opção de selecionar quem entrevistar e quem ignorar, que perguntas fazer, que aspectos realçar, que tom dar aos vários elementos possíveis da notícia; c) a “especialização” do jornalista em determinado setor, com seu próprio conjunto de fontes; d) o estatuto de “estrela” de determinados jornalistas permite a eles transgredirem a política editorial do jornal.

Essas possibilidades, entretanto, se tinham maior campo de ação no momento histórico da pesquisa de Breed, hoje, apesar de não eliminadas completamente, devem ser muito relativizadas. Isso pela ampliação do uso da pauta 6, cada vez mais detalhada, que discrimina fontes, enfoques e até perguntas e tamanho que a matéria jornalística vai ocupar, constituindo-se em um dos principais filtros, “um fio condutor que delimita o que será publicado ou levado ao ar”, conforme Clóvis Rossi em O que é jornalismo, de 1985.

Traquina (2001) elenca outros estudos que também procuraram destacar a influência organizacional no conteúdo das notícias. Lee Sigelman, no artigo Reporting the news: an organizational analysis, publicado em 1973 no American Journal of Sociology, onde analisa dois jornais norte-americanos, destaca três mecanismos que integram ou coagem o jornalista: por osmose, por controles diretos exercidos pelos superiores e por motivações materiais e normativas, em especial os vencimentos e sentimentos de lealdade. Dan Nimmo, em Newsgathering in Washington, de 1964, estudo sobre 35 correspondentes em Washington, mostra que dois controles indiretos são a utilização da notícia na edição e o tipo de tarefa atribuída. Para James Curran, em Culturalist perspectives of news organizations: a reappraisal and a case study, de 1990, o jornalista goza de uma “autonomia consentida”, que dizer, a autonomia do jornalista é permitida enquanto se exercer em conformidade às regras da empresa jornalística.

Em síntese, para a teoria organizacional, as notícias são, conforme Traquina (2001, p. 77), “o resultado de processos de interação social que têm lugar dentro da empresa jornalística”.

As teorias de ação política

Nas teorias de ação política, segundo Traquina (2001), os veículos noticiosos são vistos de uma perspectiva instrumental: estão objetivamente servindo a determinados interesses políticos. O autor português identifica duas versões destas teorias. Na versão de direita, os jornalistas têm um papel ativo nas críticas anticapitalistas, pois compõem, ao lado de burocratas e outros intelectuais, uma “nova classe” com “interesse em expandir a atividade reguladora do Estado à custa das empresas privadas” (p. 81).

Além dos autores citados por Traquina (Kristol, 1975; Efrom, 1979; Lichter, Rotham e Lichter, 1986), análises semelhantes, com referências à imprensa brasileira, poderão ser encontradas no site Mídia Sem Máscara (http://www.midiasemmascara.org/), editado pelo jornalista e filósofo Olavo de Carvalho, para quem o jornalismo brasileiro e mundial integram uma articulação esquerdista, ao lado, entre outros, de ONGs e movimentos pacifistas.

Robert Hackett (apud TRAQUINA, 2001, p. 81) elenca os pressupostos da versão de direita das teorias de ação política:
1) os jornalistas detêm o controle pessoal sobre o produto jornalístico; 2) os jornalistas estão dispostos a injetar as suas preferências políticas no conteúdo noticioso; 3) os jornalistas enquanto indivíduos têm valores políticos coerentes e, a longo prazo, estáveis. Nesta versão da teoria, os valores coletivos dos jornalistas são considerados substancialmente diferentes da população em geral.
Na versão de esquerda, conforme Traquina, os jornalistas são vistos como “executantes a serviço do capitalismo, quando não coniventes com as elites” (p. 81). No que ele chama de uma das mais completas formulações desta visão, Edward Herman e Noam Chomsky, num livro de 1989 chamado Manufacturing consent: the political economy of the mass media 7, negam tanto a teoria do gatekeeper quanto a teoria organizacional, pois, para eles,
o conteúdo das notícias não é determinado ao nível interior (isto é, ao nível dos valores e preconceitos dos jornalistas), nem ao nível interno (isto é, ao nível da organização jornalística), mas ao nível externo, ao nível macroeconômico. Nesta versão da teoria, uma relação direta é estabelecida entre o resultado do processo noticioso e a estrutura econômica da empresa jornalística [...] os mídia reforçam os pontos de vista do establishment (o poder instituído), devido ao poder dos donos dos grandes meios de comunicação social e dos anunciantes. (TRAQUINA, 2001, p. 82)
Para os autores, há cinco fatores que explicam a submissão do jornalismo ao capital: 1) a estrutura de propriedade; 2) a procura do lucro e a importância da publicidade; 3) a dependência dos jornalistas de fontes governamentais e empresariais; 4) as ações punitivas dos poderosos e, no caso da imprensa americana, 5) a forte ideologia anticomunista dominante entre a comunidade jornalista. Isto leva Herman e Chomsky e formularem a hipótese do modelo de propaganda, assim explicado por Traquina (2001, p. 84):
o ‘propaganda framework’ sugere a seguinte hipótese: quando surgem situações em que podem ser ‘marcados pontos contra países inimigos’ ou idéias ameaçadoras, os mídia serão freqüentemente ativos em ‘campanhas publicitárias’ de grande intensidade e paixão. Pelo contrário, quando acontecimentos muito semelhantes ocorrem em países amigos, os mídia mostrarão interesse pelas circunstâncias especiais envolvidas e prosseguirão uma política de negligência benigna.
Então, para Traquina, a conclusão de Herman e Chosmky é que o jornalismo é uma arena fechada, numa “visão altamente determinista do funcionamento do campo jornalístico” (p. 85), sem possibilidades de manifestações de autonomia ou de fuga do controle. Ele critica também a limitação da pesquisa a estudos de caso das questões de política internacional, o que reduziria sua capacidade explicativa para assuntos internos, nos quais poderia haver maior divisão entre a elite. E cita a crítica de Daniel Hallin, exposta em We keep América on top of the world, para quem o modelo de propaganda de Herman e Chomsky é estático e unidimensional, reduzindo a ideologia dos jornalistas a uma mera questão de falsa consciência.

A teoria estruturalista

Esta autonomia, relativa, em relação a um controle direto do poder econômico vai ser reconhecida pelos autores que integram a teoria estruturalista, embora partilhem com a teoria de ação política, versão de esquerda, a visão da mídia como elemento importante na reprodução da ideologia dominante. Herdeiros do marxismo com um viés gramsciano, tais autores compõem a escola britânica dos estudos culturais.

Para Stuart Hall [et.al.], em A produção social das notícias: o ‘mugging’ nos media 8, os meios de comunicação não narram simplesmente acontecimentos “naturalmente” noticiáveis, mas “as notícias são o produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e selecção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas” (HALL et. al. In TRAQUINA, 1999, p. 224).

Tal processo compõe-se, entre outros, de três aspectos importantes: 1) a organização burocrático-rotineira dos jornais, que vai direcioná-los para certos tipos de acontecimentos de acordo com sua própria estrutura interna – número e ênfase de editorias, de repórteres, correspondentes, setoristas, contratos com agências noticiosas, etc. – que implica na possibilidade ou não de “cobrir” determinados fatos, além de sua própria forma de inserção no campo jornalístico (jornal econômico, esportivo, local, etc.); 2) a estrutura dos valores-notícia (o fora do normal, o inesperado, o trágico e o dramático, etc), que organiza, seleciona e hierarquiza as matérias dentro de categorias prévias (as editorias); e 3) o momento de construção da própria notícia, quando um acontecimento é tornado significativo, a partir de suposições sobre o que é a sociedade e como ela funciona.

Esta pressuposição, para Hall [et. al.], é a de uma natureza consensual da sociedade, perspectiva que
nega quaisquer discrepâncias estruturais importantes entre diferentes grupos, ou entre os mapas de significado muito diferentes numa sociedade. Este ponto de vista ‘consensual’ tem conseqüências políticas importantes, quando usadas como uma base e dada como adquirida por toda a comunicação. O mesmo ponto de vista parte da assunção de que todos temos, mais ou menos, os mesmos interesses na sociedade, e que aproximadamente a mesma quota-parte de poder na sociedade. Esta é a essência da idéia do consenso político. Os pontos de vista ‘consensuais’ da sociedade representam-na como se não existissem importantes rupturas culturais ou econômicas, nem importantes conflitos de interesse entre classes e grupos (HALL et. al. In TRAQUINA, 1999, p. 226-227).

As notícias têm um papel importante na construção desta visão, uma vez que o acontecimento é tornado significativo dentro de “mapas de significado” e enquadramentos que incorporam e refletem valores e visões de mundo hegemônicas. Assim, assumindo a proposição da hipótese de agenda setting, Hall afirma que a mídia define, para a maior parte da população, os acontecimentos significativos e “oferece interpretações poderosas acerca da forma de compreender estes acontecimentos” (p. 228)

Esta hegemonia não é, no entanto, resultado de uma conspiração do poder econômico que domina a mídia. Para Hall, é nas estruturas de produção das notícias que se pode observar como os media reproduzem as definições dos dominantes. Ocorre que
dois aspectos de produção jornalística – as pressões práticas de trabalho constante contra o relógio e as exigências profissionais de imparcialidade e objectividade – combinam-se para produzir um exagerado acesso sistematicamente estruturado aos media por parte dos que detêm posições institucionalizadas privilegiadas. Deste modo, os media tendem, fiel e imparcialmente, a reproduzir simbolicamente a estrutura de poder existente na ordem institucional da sociedade. [...] O resultado desta preferência estruturada dada pelos media às opiniões dos poderosos é que estes “porta-vozes” se transformam no que se apelida de definidores primários (primary definers) de tópicos (HALL et. al. In TRAQUINA, 1999, p. 229).

Hall explica que a definição primária estabelece os parâmetros e os limites dos debates posteriores. Por meio de seu enquadramento do problema, vai fornecer os critérios para a qualificação de relevantes ou irrelevantes e, portanto, selecionadas ou não selecionadas, das posições que vierem a se apresentar. Os argumentos contrários a uma definição primária acabam obrigados a seguirem a demarcação dela do que é o problema em questão.

Ben Bagdikian estabelece uma idéia que é central à teoria estruturalista:
o preconceito a favor de fontes noticiosas especializadas e estabelecidas é um reflexo do fato óbvio de que os mídia noticiosos refletem em toda a parte os valores dominantes da sociedade. Embora o afastamento destes valores seja inerentemente noticiável pelos padrões convencionais, tendem a ser apresentados como interessantes por causa da sua excentricidade, ou natureza bizarra, obscurecendo qualquer significado social importante (BAGDIKIAN. In TRAQUINA, 2001, p. 116).

Então, se um primary definer coloca, numa cobertura de uma determinada ação do MST, que os sem-terra estavam armados, este passa a ser o ponto central da questão a ser tratada pela matéria, e não a estrutura fundiária brasileira ou se aquele latifúndio ocupado cumpre ou não sua função social, conforme a Constituição brasileira. E mesmo fontes ligadas aos sem-terra – para que se cumpra a regra fundamental de “ouvir os dois lados” – terão de responder se eles estavam ou não armados, para não “desviarem do assunto”.

Traquina entende que também a teoria estruturalista sofre de um excessivo determinismo. Para ele, a relação entre os primary definers e os jornalistas é vista aqui de maneira unidirecional, na qual aqueles sempre comandam a ação. Na teoria estruturalista, ainda conforme Traquina, nunca há um processo de negociação antes da definição principal e, “encarado como um espaço de reprodução da ideologia dominante, o campo jornalístico perde o seu potencial como objeto de disputa, como recurso potencial para todos os diversos agentes sociais” (TRAQUINA, 2001, p. 94).

A teoria etnoconstrucionista

A teoria etnoconstrucionista 9 compartilha com a estruturalista a idéia de que a notícia é uma construção social, fruto de processos complexos de interação entre jornalistas, fontes, comunidade profissional, sociedade, etc. Ambas rejeitam também a teoria do espelho e destacam as condicionantes do local de trabalho dos jornalistas (integrando contribuições da teoria organizacional). E reforçam a importância dos valores-notícia e das rotinas e procedimentos dos jornalistas na execução de seu trabalho, além de afirmarem um certo grau de autonomia dos jornalistas, negando uma visão instrumentalista da notícia e classificando a teoria da ação política como uma “teoria conspiratória”.

Jorge Pedro Sousa avança uma definição de notícia capaz de sintetizar a visão da teoria etnoconstrucionista. Para ele, notícias são

artefatos lingüísticos que procuram representar determinados aspectos da realidade e que resultam de um processo de construção e fabrico onde interagem, entre outros, diversos fatores de natureza pessoal, social, ideológica, cultural, histórica e do meio físico/tecnológico, que são difundidos pelos meios jornalísticos e aportam novidades com sentido compreensível num determinado momento histórico e num determinado meio sociocultural (ou seja, num determinado contexto), embora a atribuição última de sentido dependa do consumidor da notícia. Registre-se ainda que, embora as notícias representem determinados aspectos da realidade cotidiana, pela sua mera existência contribuem para construir socialmente novas realidades e novos referentes (SOUSA, 2002, p. 13).
A socióloga norte-americana Gaye Tuchmann, uma das importantes pesquisadoras desta linha, procura mostrar como as rotinas diárias dos jornais influenciam a cobertura, uma vez que eles se vêem colocados frente a um desafio pela natureza dúplice de sua matéria-prima: os acontecimentos podem surgir em qualquer parte e podem surgir a qualquer momento.

Frente a tal imprevisibilidade – e ainda pressionados pelos horários de fechamento --, os jornais tentam impor uma ordem no espaço e no tempo. No primeiro caso, criando uma rede noticiosa de repórteres, correspondentes e setoristas, além da compra dos serviços de agências, para capturar os acontecimentos. Isso implica que aqueles julgados notícia terão tendência a ocorrer em determinados locais e não em outros. Por exemplo: as bolsas de valores, a Câmara dos Deputados, os grandes clubes de futebol, etc. contam com setoristas de plantão diariamente. A possibilidade que têm, então, de gerar notícias é muito maior que a de um sindicato de trabalhadores, um movimento popular ou uma câmara de vereadores de uma pequena cidade do interior do país, que não têm jornalistas previamente designados para acompanhar seu dia-a-dia.

O tempo é outra variável importante: mesmo os acontecimentos destes locais determinados terão maior possibilidade de virar notícia caso ocorram durante as horas normais de trabalho da redação. Um processo de decisão governamental ou uma partida de futebol que, por algum problema, tenham conclusão após a meia-noite dificilmente estarão nos jornais impressos do dia seguinte 10. Outra forma de enfrentar o tempo é o agendamento de pautas, por meio do qual as empresas listam os acontecimentos previstos e tentam planejar o futuro.

Molotoch e Lester, em As notícias como procedimento intencional: acerca do uso estratégico de acontecimentos de rotina, acidentes e escândalos 11, ampliam os componentes deste jogo noticioso, ao identificar jogadores diferentemente posicionados.
Primeiro, há os promotores de notícia (news promoters) – aqueles indivíduos e seus associados (por exemplo, Nixon, a secretária de Nixon; Kunstler, o porta-voz de Kunstler; um-homem-que-viu-um-disco-voador) que identificam (e tornam assim observável) uma ocorrência como especial, com base em algo, por alguma razão, para os outros. Em segundo lugar, há os news assemblers (jornalistas, editores e rewritemen) que, trabalhando a partir dos materiais fornecidos pelos promotores, transformam um perceptível conjunto finito de ocorrências promovidas em acontecimentos públicos através de publicação ou radiodifusão. Finalmente, há os consumidores de notícias (news consumers) (por exemplo, os leitores), que analogamente assistem a determinadas ocorrências disponibilizadas como recursos pelos meios de comunicação social e criam, desse modo, nos seus espíritos uma sensação de tempo público. (MOLOTOCH e LESTER. In TRAQUINA, 1999, p. 38).
Neste espaço de disputa que é a construção das notícias, os promotores diferentemente posicionados tentarão dar vida pública a certas ocorrências, buscando transformá-las em notícias, assim como evitar que outras cheguem ao conhecimento dos públicos. Nesta concorrência, Traquina identifica uma dimensão essencial da luta simbólica nas sociedades contemporâneas. E Molotoch e Lester identificam três formas distintas dos agentes terem acesso à mídia: o acesso habitual, o acesso disruptivo e o acesso direto.

No primeiro caso, indivíduos ou grupos em determinada localização serão sempre “boas fontes” (espera-se que um governador de estado, um presidente da Câmara dos Deputados ou um craque de time grande sempre tenham coisas importantes a dizer). No segundo, grupos ou indivíduos fora do campo das “boas fontes” promoverão acontecimentos fora da rotina para participar da construção da experiência pública. As greves, manifestações públicas que fecham o trânsito, as ocupações, etc. enquadram-se aqui. O acesso direto é aquele reservado aos próprios jornalistas, que têm certo poder de interferir nas reportagens que desenvolvem. Para Molotoch e Lester, “o acesso habitual é uma das importantes fontes e sustentáculos das relações existentes de poder” (In TRAQUINA, 1999, p. 44)

A seleção das fontes é outro elemento destacado pelos autores da teoria etnoconstrucionista. Traquina elenca três critérios que se destacam entre os jornalistas para avaliar as fontes: autoridade, produtividade (capacidade da fonte de oferecer materiais suficientes para a produção da notícia) e credibilidade. Então, para ele, “devido a estes critérios é fácil compreender que as fontes oficiais correspondem melhor que as outras a necessidades organizativas das redações” (TRAQUINA, 2001, p. 106).

Também ocupam papel de destaque nestes estudos as rotinas do trabalho jornalístico. Traquina destaca que para a teoria etnoconstrucionista, os jornalistas, diante do excesso de acontecimentos – os grandes jornais recebem material diário suficiente para três, quatro e até mais edições – e do pouco tempo, somado aos critérios de avaliação das fontes, implicam-se numa dependência dos canais de rotina. E o próprio saber profissional se vincula também à capacidade de conhecer formas rotineiras de processar diferentes tipos de informação e adequá-los a determinados padrões cognitivos. Vem daí o uso dos exemplos didáticos e comparativos – extensão de terras comparadas a tamanhos de campos de futebol, quantidades de dinheiro comparadas ao número de carros populares que poderiam comprar, etc --, tão comuns à imprensa.

Sousa ressalta estes aspectos:

como o ser humano só processa uma pequena quantidade de informação a cada momento, os jornalistas, sob a pressão do tempo, farão um uso adaptado de rotinas cognitivas que lhes sejam familiares para organizar as informações e produzir sentido. [...] Outras pesquisas no campo da psicologia cognitiva mostram que em condições de sobre-informação as pessoas e, por conseguinte, os jornalistas, recorrem a formas estereotipadas de pensamento (o que pode ajudar a explicar a padronização noticiosa). [...] Assim, um jornalista constrangido pelas formas rotinizadas de avaliar as situações e sua própria atividade, poderá tender a fabricar informação padronizada e a selecionar sempre como tendo valor noticioso o mesmo tipo de acontecimentos. (SOUSA, 2002, p. 40-41).
Tal rotinização leva, ainda, a uma certa dependência em relação às fontes, especialmente àquelas cercadas de profissionais de assessoria de imprensa ou de relações públicas, que conhecem sobre a mecânica do trabalho jornalístico. Estas fontes terão maior possibilidade de acesso ao campo jornalístico, enquanto outras serão relegadas. Assim, o acesso aos mídia é um poder e, conforme Traquina (2001: 112), “os movimentos sociais com poucos recursos têm dificuldades em ver seus acontecimentos transformados em notícia”. E completa:

Assim, tal como a teoria estruturalista, a teoria construcionista defende que as notícias são um aliado das instituições legitimadas. Devido à necessidade de impor ordem no espaço e no tempo, a estória do jornalismo, no seu funcionamento diário, é descrita como sendo essencialmente a estória da interação de jornalistas e fontes oficiais. As fontes provêm sobretudo da estrutura do poder estabelecido e, por isso, as notícias tendem a apoiar o status quo (TRAQUINA, 2001, p. 113).

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Notas

1 Apud LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 3a ed. Florianópolis: UFSC, 2000 www.ufsc.br>
2 A descrição da postura exigida do jornalista, feita por Amaral, é idêntica àquela exigida por Durkheim, e pelos demais positivistas, do cientista social. Este também deveria limitar-se à observação e à explicação causal dos fenômenos, de forma objetiva, neutra, livre de julgamentos de valor ou ideologias, descartando prenoções e os preconceitos, de forma igual ao que faria o homem das ciências da natureza.
3 Pierre Bourdieu afirma que “o campo jornalístico se constituiu como tal no século XIX em torno da oposição entre jornais que ofereciam antes de tudo nouvelles, de preferência ‘sensacionalistas’, ou melhor, de sensação’, e jornais propondo análises e comentários, preocupados em marcar sua distinção em relação aos primeiros enfatizando com vigor os valores da objetividade; o campo jornalístico é o lugar de uma oposição entre duas lógicas e dois princípios de legitimação: o reconhecimento pelos pares, acordados entre aqueles que reconhecem de forma mais completa os ‘valores’ e os princípios internos, e o reconhecimento pelo maior número, materializado pelo grande número de entradas, de leitores, ouvintes ou espectadores, ou seja, o índice de venda (best seller) e o lucro em dinheiro, a sanção do plebiscito democrático sendo inseparavelmente, neste caso, um veredicto do mercado”(Apud BARROS FILHO, 1995, p. 23).
4 Reeditado em TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2a ed. Lisboa: Vega, 1999.
5 Reeditado em TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2a ed. Lisboa: Vega, 1999.
6 1. Agenda ou roteiro dos principais assuntos a serem noticiados em uma edição de jornal ou revista, programa de rádio ou tv etc. Súmula das matérias a serem feitas em uma determinada edição. 2. Planejamento esquematizado dos ângulos a serem focalizados numa reportagem, com um resumo dos assuntos (no caso de suíte) e a indicação ou sugestão de como o tema deve ser tratado. [...] Podem estar contidos numa pauta, além do resumo do assunto, o tratamento que deve ser dado à matéria, uma sugestão de lide, perguntas para os entrevistados, nomes, endereços e telefones de possíveis informantes etc. (RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo G. Dicionário de comunicação. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995)
7 Publicado no Brasil, em 2003, pela editora Futura, com o título A manipulação do público.
8 Reeditado em TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2a ed. Lisboa: Veja, 1999.
9 Em 2004, sob encomenda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Mídia da UFSC, Traquina publicou no Brasil, pela editora Insular, o volume 1 do livro Teorias do Jornalismo. Porque as notícias são como são. Ali, chamou este conjunto de teoria interacionista, embora no corpo do texto use também o termo teoria etnoconstrucionista.
10 Outros meios, como o rádio e a televisão, também enfrentam problemas de tempo e de espaço. A TV, por exemplo, apesar dos avanços tecnológicos, ainda precisa deslocar uma certa parafernália para a cobertura de determinado acontecimento e nem sempre há equipes disponíveis. O rádio, apesar de mais ágil, também não consegue estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
11 Reeditado em TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2a ed. Lisboa: Vega, 1999.



quarta-feira, 8 de julho de 2009

Deputado apresenta proposta que pede volta do diploma de jornalismo

Por Redação do Comunique-se

O deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS) protocolou nesta quarta-feira (08/07) uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que restabelece a necessidade do curso superior em jornalismo para o exercício da profissão. Para a apresentação da proposta, foram recolhidas 191 assinaturas, 20 a mais que o mínimo necessário.

“Foi extremamente importante a rápida reação da sociedade, desaprovando o absurdo cometido pela Corte Suprema brasileira, e que abriu precedente para a desregulamentação de outras profissões”, comentou o deputado sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, que derrubou a obrigatoriedade do diploma.

Pimenta defende a volta da obrigatoriedade do diploma porque, em sua opinião, o jornalismo não se trata de uma “simples prestação de informação”.

“Essa atividade é mais do que a simples prestação de informação ou a emissão de uma opinião pessoal. Ela influencia na decisão dos receptores da informação, por isso não pode ser exercida por pessoas sem aptidão técnica e ética”, afirmou.

No dia 01/07, o senador Antônio Carlos Valadares também apresentou, na outra Casa parlamentar, PEC que pede o retorno da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão.

(Publicado em www.comuniquese.com.br)

O Supremo errou, cabe consertar

O Supremo Tribunal Federal cometeu um grave erro ao acabar com a exigência do diploma para o exercício profissional do jornalismo. Como guardião da Constituição brasileira, o STF entendeu que uma de suas cláusulas – a que garante a livre manifestação de pensamento – estaria sendo violada pela lei que regulamentou a profissão de jornalista.

Os ministros que votaram contra a exigência do diploma, sob a alegação de cerceamento da liberdade, erraram. Seguiram um relator subserviente à grande mídia, certo de que esta retribuiria o seu favor, o que aliás já vem acontecendo. Mostraram em seus votos desconhecer a matéria em julgamento. Nunca houve, nos mais de quarenta anos de vigência da lei, qualquer violação da liberdade que tivesse sido decorrente de sua aplicação. Houve sim censura prévia durante a ditadura e censura empresarial depois dela, fatos sem nenhuma relação com a exigência do diploma.

Os nobres julgadores parecem não ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão. Neles, todos os dias opinam profissionais de todas as áreas sem nenhum obstáculo. Portanto, a exigência do diploma não fere a Constituição e esta deveria ser a singela resposta do Supremo aos autores da ação, não por acaso entidades patronais do setor.

O que a lei derrubada garantia era a o exercício legalizado de uma profissão cujo conhecimento acumulado ao longo dos anos não pode ser transmitido senão de forma sistematizada, como se faz na academia. Foi-se o tempo em que jornalismo se aprendia nas redações. Hoje esse ensinamento é fruto da pesquisa científica desenvolvida numa área específica do conhecimento e que se transmite nas salas de aulas e nos laboratórios.

Gostaria de saber se alguns dos juizes que votaram contra o diploma – e que escrevem nos jornais com absoluta liberdade – sabem como se define e se produz uma pauta jornalística, como se apuram as informações e como se faz a edição de uma reportagem, por exemplo? Ou ainda quais são as diferenças entre um texto escrito para ser lido nos jornais, na internet ou para ser ouvido através do rádio. E como escrever para a TV combinando com precisão texto e imagem? Isso não tem nada a ver com liberdade de informação. É conhecimento especializado que sociólogos, advogados e médicos não aprendem em suas faculdades. Só os jornalistas.

E o mais importante: gostaria de saber se esses doutos juizes se debruçaram sobre o currículo teórico dos cursos de comunicação, base fundamental para o trabalho prático acima descrito. Não há hoje jornalista formado que não tenha tido contato com as diferentes correntes teóricas da comunicação, estudadas e discutidas nas faculdades.

São essas leituras que permitem aos futuros jornalistas compreender melhor o funcionamento da mídia, as suas relações com os diferentes poderes, os seus interesses muitas vezes subalternos. É nas faculdades que se formam jornalistas críticos, não apenas da sociedade, mas principalmente da mídia, capazes de saber com clareza onde estarão pisando quando se formarem. É tudo que os donos dos meios não querem.

A luta deles pelo fim do diploma resume-se a dois objetivos: destruir a regulamentação da categoria aviltando ainda mais os salários e as condições de trabalho e, ao mesmo tempo, evitar a presença em suas redações de jornalistas que possam, ainda que minimamente, contestar – com conhecimento de causa - o poder por eles exercido sem controle. Querem escolher a dedo pessoas dóceis e subservientes e transformá-las nos “seus” jornalistas.

Transfere-se dessa forma da esfera pública para o setor privado a decisão de definir quem pode ou não ser jornalista. As universidades públicas quando outorgam um diploma de um dos seus cursos ou quando reconhecem a legitimidade do diploma fornecido por instituição privada exercem a prerrogativa de possuírem fé pública. O diploma de jornalismo era, portanto, referendado pelo Estado em nome da sociedade, dando a ele a sustentação necessária para o exercício de uma profissão regulamentada desde 1938. Agora é o mercado que decide.

Outro argumento ridículo usados pelos juízes do Supremo é que o diploma era um entulho autoritário produzido pela ditadura militar. Bastava uma breve consulta aos anais de todos os encontros e congressos de jornalistas para perceber que tal afirmação é insustentável. Em 1918, quarenta e seis anos antes de se instalar a ditadura de 64, os jornalistas reunidos em Congresso no Rio de Janeiro já defendiam a formação específica em jornalismo para o exercício da profissão. E seguiram lutando por essa bandeira e pela regulamentação profissional.

Em 1961, o presidente Jânio Quadros publicou decreto regulamentando a profissão. A partir dai o seu exercício ficou restrito aos portadores de diploma específico de nível superior. Como agora, as empresas jornalísticas se mobilizaram e conseguiram, um ano depois, a revogação do decreto pelo presidente João Goulart. Mas em compensação foi criada uma comissão para dar nova forma à legislação. O resultado foi a volta da exigência da formação superior, embora admitindo o autodidata e o reconhecimento de jornalistas sem diploma nas cidades onde não haviam faculdades de jornalismo. O decreto-lei de 1969 apenas acabou com o autodidatismo, mas permitiu a existência do jornalista provisionado, aquele que já exercia a profissão antes da promulgação da lei.

Foi graças à mobilização e à pressão da categoria que, depois de mais de 50 anos de luta conquistou-se a exigência do diploma, nos termos previstos desde de o final da primeira década do século 20.

E os juízes de 2009 ainda tiveram a coragem de aceitar a tese de que foi a ditadura que exigiu o diploma para impedir contestações nos jornais. Como se os jornalistas pudessem escrever o que quisessem sem a anuência dos patrões, como se na época não houvesse censura policial e como se todos os possíveis contestadores do regime não estivessem aquela altura mortos, exilados, sendo torturados ou simplesmente calados pela força da intimidação.

Voltamos agora à pré-história do jornalismo brasileiro quando os donos de jornais davam “carteiras de jornalistas” para os empregados e diziam: “agora você já é jornalista, pode ir buscar o salário lá fora”. Se o “jornalista” tivesse algum pudor iria ganhar seu dinheiro em outra profissão trabalhando no jornal por diletantismo. Se não tivesse iria usar do seu espaço para ameaçar pessoas, em troca de remuneração. Era o chamado achaque que, obviamente não era generalizado mas que constrangia os jornalistas idôneos.

A obrigatoriedade do diploma foi responsável pela moralização da profissão. Além disso, estimulou os diplomados a refletirem sistematicamente sobre o seu trabalho. Será que os nobres juizes do Supremo ouviram falar alguma vez na riquíssima experiência de pesquisa, necessária ao trabalho de conclusão de curso, condição para se obter o grau superior de jornalismo? Acredito que não. E não sabem também como, ao ingressar na profissão com o diploma, o jornalista tem olhos mais atentos para recolher na prática profissional os elementos necessários para a realização de novas pesquisas acadêmicas.

São inúmeros os jornalistas que depois de alguns anos de vida profissional voltam à academia ingressando em programas de mestrado ou doutorado. Carreiras acadêmicas serão destruídas. E com isso vai se iniciar um processo de destruição de uma área do conhecimento que vinha se consolidando nos últimos anos graças ao investimento dos órgãos de fomento à pesquisa e das universidades. A exigência do diploma é vital para manter viva a relação entre o trabalho e a pesquisa.

Como se vê, além de errarem, os juizes do Supremo foram irresponsáveis por não mediram as conseqüências da decisão tomada.

Mas há conserto. Tramitam no Congresso duas propostas de emenda constitucional determinando a volta da exigência do diploma de nível superior para o exercício da profissão. Não é fácil aprová-las dadas as exigências regimentais. Na Câmara, por exemplo, precisam do voto favorável de três quintos dos deputados (308 entre 513) e no Senado de 49 dos 81 senadores. Votos que só serão conseguidos com a mobilização ampla da categoria e dos estudantes, o que aliás já vem ocorrendo em todo o Brasil. Resta agora intensificar essa luta que já se mostrou vitoriosa em outros momentos de nossa história.

*Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

(Publicado originalmente no site Carta Maior - www.cartamaior.com.br)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Fim do diploma de jornalismo será discutido em audiência na quinta

Por Agência Câmara

A Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio realiza audiência pública na quinta-feira (9) para discutir o fim da obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão. O debate foi proposto pelo deputado Miguel Corrêa (PT-MG).

A decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal, no mês passado, no julgamento de recurso extraordinário protocolado pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo (Sertesp) contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Michel Corrêa afirma que a decisão do STF de acabar com a obrigatoriedade do diploma provoca um grande impacto na área de jornalismo e precisa de uma discussão mais aprofundada. "Precisamos entender melhor a decisão do Supremo Tribunal Federal e ouvir todos os pontos de vista sobre o assunto".

Decisão irreversível

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso no STF, disse que não há possibilidade de o Congresso reverter o que foi decidido pelo Supremo e explicou que, futuramente, a decisão deve atingir outras profissões regulamentadas.

Para Corrêa, no entanto, o Legislativo está apenas cumprindo o seu papel. "É uma posição do ministro do Supremo e eu respeito inteiramente. Agora, é óbvio também que isto não impede a Casa Legislativa de manter os seus trabalhos. Aqui no Congresso, nós temos outro entendimento."

Convidados

Foram convidados para o debate:- o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes;- o ministro do STF Marco Aurélio de Mello; - o procurador regional da República da 3ª Região de São Paulo, André de Carvalho Ramos; - o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo de Andrade; - o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Daniel Pimentel Slavieiro; - o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo; - a presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito; - a coordenadora do Curso de Comunicação Social da Universidade de Brasília (UNB), Dione Oliveira Moura; - o jornalista Álvaro Damião, da Rádio Itatiaia e TV Alterosa de Minas Gerais; e- o editor da Revista Fale Brasilia Marcos Linhares.

A audiência está marcada para as 9h30.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Diploma pode voltar

Por João José de Oliveira Negrão

A exigência do diploma superior específico para o exercício da profissão de jornalista pode voltar. Contrariando interpretação recente do STF – que extinguiu a necessidade de formação para os jornalistas –, circulam no Congresso Nacional projetos de emenda à Constituição que recolocam aquela obrigatoriedade. A PEC do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) já foi apresentada na semana passada; a do deputado federal – e também jornalista – Paulo Pimenta (PT-RS) está colhendo assinaturas.

E também contrariando certas declarações do ministro Gilmar Mendes e de outros intérpretes antidiploma, juristas de renome afirmam que é possível, sim, a recriação da exigência por meio do legislativo. É o caso do ex-ministro do STF Maurício Correa, do presidente nacional da OAB, Cezar Brito, e dos professores titulares João dos Passos Martins Neto, do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, e Antônio Álvares da Silva, do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, entre outros.

Ao lado da movimentação dos parlamentares no Congresso Nacional, jornalistas, professores e jornalismo e estudantes continuam se mobilizando em defesa da qualificação da profissão. Aqui em Sorocaba, com representantes destes três segmentos, vem se reunindo a Frente Regional em Defesa da Regulamentação do Jornalismo, que já criou um blog (www.pelodiploma.blogspot.com) para organizar debater o tema e organizar os interessados nesta luta. Meu blog (www.azesquerda.blogspot.com) também tem acompanhado os desdobramentos desta discussão no país. No próximo dia 17, em São Paulo, haverá uma reunião nacional para dar continuidade ao processo de lutas dos jornalistas pela qualificação.

(Publicado no Bom Dia de 06/07/09)

Poder econômico constrange a pluralidade na Imprensa

Por João José de Oliveira Negrão

As histórias do jornalismo e da democracia se confundem, embora sejam independentes e não possam ser localizadas no mesmo tempo histórico. É difícil identificar qualquer sinal do que a era moderna vai chamar de jornalismo na Grécia clássica, berço da experiência democrática. No entanto, se cronologicamente estas histórias não se sobrepõem, é possível dizer que a reconstrução da democracia e o jornalismo – ambos filhos da modernidade – , do ponto de vista da teoria social e política, estão intimamente ligados.

Já no longo período de passagem da Idade Média para a Idade Moderna, vamos encontrar estas duas reivindicações colocadas ao mesmo tempo durante os processos revolucionários que deram origem à nova ordem burguesa: liberdade de expressão e a livre circulação das ideias, ao lado da luta por um poder político cuja legitimidade se assentasse na vontade popular e não mais na vontade divina, como pretensamente se justificavam as monarquias absolutistas.

A modernidade, então, construiu esta simbiose: não há democracia ali onde não existe uma imprensa livre e independente. A prova histórica desta afirmação pode ser buscada já no nascedouro dos jornais e de suas pequenas gráficas, sempre constrangidos pela tentativa de controle e de censura, quer por parte do Estado, quer por parte da Igreja. No Brasil imperial, não foi muito diferente: nosso primeiro jornal, o Correio Braziliense, nasceu no exílio inglês de Hipólito da Costa.

As ditaduras, seja a do Estado Novo, seja a do golpe militar, sempre quiseram controlar a imprensa. E sempre houve tentativas de fuga deste controle. Não nos iludamos, porém: outro constrangimento tão forte sobre uma imprensa livre e plural é a força do poder econômico e dos conglomerados midiáticos que hegemonizam hoje os grandes meios de comunicação. Poucos e raros, por exemplo, foram os jornais, rádios e tevês que se opuseram ao golpe contra João Goulart, em 64. Aqueles que o fizeram, como a Última Hora e o Correio da Manhã, acabaram fechando suas portas, enquanto outros viram transformar-se em grandes empresas, com acesso aos créditos oficiais.

As mesmas tendências se abatem sobre a imprensa local. No caso de São Paulo, por exemplo, estão se constituindo, no interior, grandes conglomerados de mídia, que possuem, ao mesmo tempo, jornais, revistas, rádios, tevês e portais. É a chamada propriedade cruzada, que deve ser um ponto fulcral de debate na Conferência Nacional de Comunicação, que vai acontecer no final deste ano. Em muitos países democráticos contemporâneos, esta propriedade cruzada é constitucionalmente proibida, mecanismo que tem a intenção de garantir uma maior pluralidade de vozes com acesso ao espaço público. Deste ponto de vista da pluralidade, não deixa de ser positivo o fato de uma empresa independente, como o Diário de Sorocaba, chegar aos 51 anos, ainda que com dificuldades para enfrentar aquela concorrência.

É na perspectiva de colaborar para a existência do maior número possível de empresas de comunicação que deve ser saudada a política do governo federal de pulverizar a verba publicitária da União. Em 2008, no governo Lula, ela chegou a 5297 veículos, enquanto, em 2003, só atingia 499. A Folha de S. Paulo e O Globo teceram fortes críticas a esta política, com o evidente interesse de manter o oligópolio da divulgação da publicidade oficial que marcou nossa história recente.

Outro risco à pluralidade e à democracia é a recente decisão do STF de acabar com a exigência do diploma superior específico para a profissão de jornalista. Esta exigência, de alguma maneira, estabelecia parâmetros socialmente definidos para o ingresso na carreira de uma profissão que lida com um bem fundamental à democracia: a informação. Ao extinguir o diploma, o STF deixou nas mãos de uma corporação de 10 a 15 famílias – que dominam o oligopólio dos meios de comunicação brasileiros – a tarefa de decidir quem pode e quem não pode ser jornalista.

(Publicado no Caderno Especial do Diário de Sorocaba, de 5 e 6/07/09, em comemoração aos 51 anos do jornal)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O extermínio do diploma de Jornalismo e a norma de fantasia do Supremo Tribunal

Por João dos Passos Martins Neto*

Segundo o Supremo Tribunal Federal, a exigência de graduação em curso superior como condição para o exercício da profissão de jornalista, prevista na legislação ordinária, é incompatível com a Constituição. Proferida em junho de 2009, com o voto divergente de apenas um dos juízes da Corte, a decisão arrufou melindres e chocou inteligências pelas comparações entre o jornalismo e a culinária e pela suposição de que a atividade jornalística não requer uma técnica específica. Todavia, o defeito capital do julgamento é outro e seu nível de nocividade é muito mais profundo. Ele diz respeito, conjuntamente, ao exercício arbitrário do poder judicial e à manipulação temerária dos textos constitucionais submetidos à interpretação e aplicação.

A obrigatoriedade do curso superior para exercício do jornalismo está prevista no Decreto-Lei nº 972/1969. A norma, como tantas outras da época do regime militar, foi editada pelo poder executivo, mas gozando da mesma força atribuída às leis ordinárias aprovadas no parlamento, na conformidade da Constituição anterior. Daí a expressão Decreto-Lei (Decreto, por ser ato do poder executivo; Lei, por ter força de ato legislativo típico). Com a superveniência da nova Constituição em 1988, a figura do Decreto-Lei foi abolida, não havendo mais possibilidade de edição, para o futuro, de espécies normativas desse tipo. Os Decretos-Leis expedidos no passado, contudo, aí incluído o que regulamenta a profissão jornalística, não perderam automaticamente sua vigência com o advento da nova ordem constitucional porque, do ponto de vista formal, sua elaboração fez-se de acordo com as regras de competência e procedimento estabelecidas na Constituição anteriormente vigente. Segundo entendimento assentado na doutrina constitucional, para que sejam considerados revogados ou não recepcionados, não se pode invocar o fato de que sua forma de elaboração não é mais admitida. É preciso, em vez disso, que seja identificável um conflito de conteúdo ou substantivo entre as suas disposições e as disposições da nova Constituição.

Por isso, a derrubada do requisito do diploma, na esfera judicial, dependia da constatação de um conflito do seguinte tipo: a lei ordinária e a lei constitucional são contraditórias; enquanto a primeira exige a formação superior, a segunda a dispensa. Nessa hipótese, uma vez que a lei constitucional vale mais do que a lei ordinária, a norma de inexigibilidade teria que prevalecer sobre a norma de exigência. Mais: no caso de estar configurada a contradição, o Supremo Tribunal Federal estaria autorizado a afastar a norma de exigência em favor da norma de inexigibilidade. Só assim sua intervenção dar-se-ia no campo da atuação jurídica. No Estado Constitucional, nenhum juiz pode, legitimamente, derrubar uma lei segundo critérios de mera discordância e contrariedade. Pode fazê-lo em razão da necessidade de impor respeito uma norma de nível superior, caso em que estará apenas defendendo e prestigiando o direito mais alto, e não simplesmente negando, por descontentamento, o direito mais baixo.

No caso, o conflito normativo jamais existiu. Para começo de conversa, mesmo os juízes do Supremo Tribunal Federal haverão de transigir num ponto: a Constituição não contém qualquer norma que, de modo expresso e categórico, comande algo como “o exercício da atividade jornalística é livre a todas e quaisquer pessoas e independe de graduação em curso superior”. Portanto, enquanto o requisito do diploma tem previsão em texto de conteúdo inequívoco da legislação ordinária, a existência de uma norma constitucional de inexigibilidade seria, no mínimo, bastante incerta e sujeita a controvérsia. Na literalidade do texto constitucional uma tal norma não é encontrada, de modo que seu reconhecimento poderia apenas ser inferido ou deduzido indiretamente de outras disposições de algum modo correlatas e genéricas. Ainda que inferências e deduções sejam tarefa normal da interpretação jurídica, o fato de que a única vontade legislativa manifesta impõe o diploma deveria gerar a presunção de legitimidade da exigência e sujeitar a solução contrária a severas resistências metodológicas.

O mais notável, contudo, é que as normas constitucionais mais próximas e conexas com o assunto, muito longe de permitir a extração de um comando implícito de inexigibilidade do diploma, na verdade reforçam a sua inexistência. No art. 5º, XIII, a Constituição diz que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações que a lei estabelecer”. No art. 22, XVI, a Constituição diz que “compete privativamente à União legislar sobre condições para o exercício de profissões”. Combinadas, as duas disposições implicam o seguinte: a lei constitucional transferiu para a lei ordinária, deliberadamente, o poder de dispor sobre quais profissões terão ou não seu exercício sujeito, por exemplo, à graduação em curso superior. A razão é óbvia. A lei constitucional faz a regulação essencial dos poderes estatais e dos seus limites, mas não desce – e nem pode – à minúcia da regulamentação de profissões. Ela tende, por natureza, a silenciar absolutamente sobre requisitos de exercício profissional.

O legislador ordinário tem assim, por delegação constitucional expressa, autonomia para não só exigir ou dispensar o curso superior, mas também para definir e avaliar os critérios que devem presidir sua decisão. É claro que se trata de autonomia relativa, limitada, condicionada. A lei, qualquer lei, deve ser sempre razoável, não pode ser expressão de um desatino, uma psicose, um ódio, enfim, de um ato arbitrário, sem razão plausível. É indiscutível que juízes devam recusar leis desse tipo. No caso, porém, a lei do diploma de jornalismo passa fácil no teste da razoabilidade, summa cum laude.

Em primeiro lugar, o fato de existirem boas razões em favor da inexigibilidade não significa que não existam boas razões em favor da exigência. Isso vale não só para o jornalismo, mas para a administração, a psicologia e até para o direito. Em segundo lugar, a existência de controvérsia sobre o que é melhor e o que é pior não indica irracionalidade da norma que, no embate dos prós e dos contras, escolhe um dos caminhos possíveis e aceitáveis. Ao contrário, o principal indicador de uma norma sem razoabilidade é a ausência de disputa, é o consenso na objeção que sucede a sua adoção.

Nesse sentido, a lei do diploma é, como inúmeras leis, simplesmente polêmica, mas nunca, jamais, destituída de razoabilidade ou racionalidade. É apenas o produto de uma opção política do legislador autorizado, feita conscientemente num quadro de sérias e ponderáveis razões concorrentes. É, enfim, uma norma perfeitamente constitucional na perspectiva da noção de razoabilidade. A propósito, ao enunciar o voto condutor do julgamento, o Ministro Gilmar Mendes advertiu que só chegou à sua conclusão “depois de muito refletir”. É curioso: se muito teve de refletir é porque as razões concorrentes, contra e a favor do diploma, foram percebidas como igualmente fortes, equilibradas. Em que pese o desfecho do processo, a declaração não deixa de equivaler a um atestado da razoabilidade da condição legalmente imposta.

As evidências de razoabilidade da lei eram difíceis de ultrapassar. Por isso, o Tribunal teve que apelar a um outro fundamento. Para a maioria dos juízes, a norma constitucional de inexigibilidade do diploma é dedutível da norma constitucional que assegura a liberdade de imprensa e o acesso à informação, ou mais especificamente, do art. 220, § 1º, segundo o qual “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”. Segundo o padrão do raciocínio, ao condicionar o exercício do jornalismo aos diplomados em curso superior, a lei ordinária veda o acesso de pessoas à atividade e, em conseqüência, reduz as possibilidades de circulação da informação. Em suma: a inexigibilidade do diploma é uma condição da liberdade de imprensa e, como tal, embora sem previsão expressa, é uma norma constitucional a ser logicamente pressuposta. Daí porque a lei do diploma seria incompatível com a Constituição.

O argumento é inviável. A cláusula constitucional da liberdade de expressão tem um único sentido seguro, nítido, identificável na história. Ela visa a impedir que o poder público, por seus legisladores, governantes e juízes, editem, executem ou endossem leis restritivas do conteúdo do discurso circulável por razões de divergência ideológica ou de contrariedade a interesses. Ela coíbe a instituição de verdades oficiais, a discriminação de pontos de vista, a catalogação de tabus ou assuntos proibidos, a interdição de doutrinas políticas, a censura da informação. Este é o núcleo essencial da cláusula: impedir a estatuição de limites arbitrários ao conteúdo dos atos comunicativos.

Desse sentido central e preciso, é no mínimo uma temeridade saltar para a conclusão de que a cláusula da liberdade de expressão compreende um comando específico que veda à lei condicionar o exercício da profissão de jornalista à formação superior. Seria algo aceitável, talvez, para decifradores de enigmas ou deslindadores de mistérios, não para juízes, de quem se deve esperar prudência em vez de acrobacias no escuro. Juízes devem impor direito certo, não ilações de validade incerta.

Se não bastasse, as premissas do argumento são inexatas e falaciosas. A lei não veda o acesso à atividade jornalística, apenas a condiciona. Qualquer um pode exercer a profissão desde que implemente a condição estabelecida, ou seja, cursar a faculdade. A atividade está franqueada a todos porque o que conta é a potencialidade do acesso. É assim sempre. Para ser advogado há que ser bacharel em direito, mas não se trata aí de impedimento. O caminho está livre, em potência, à universalidade de pessoas. A asserção de que a lei reduz a circulação da informação é especulativa, retórica. Os juízes não se apoiaram sobre qualquer base empírica, o que é sempre indispensável diante de uma duvidosa questão de fato. O efeito suposto é, além disso, improvável.

Muito mais avisado é acreditar no efeito contrário, isto é, no fato de que a exigência do diploma não tem qualquer repercussão sobre a amplitude da liberdade de informação. Quem conhece a dinâmica da atividade sabe que os veículos e os profissionais do jornalismo não são a fonte da informação, mas apenas o seu canal. A lei do diploma não afeta quem, vivenciando o acontecimento, traz a informação, mas diz respeito somente a quem a colhe, refina e divulga. Por isso, o requisito do diploma não parece ter aptidão para interferir negativamente sobre a maior ou menor circulação da informação. Se os acontecimentos são naturalmente independentes e as fontes não são bloqueadas, não há porque supor que a informação será mais ou menos abundante em função do número mais ou menos extenso de jornalistas. Além disso, ninguém está impedido de escrever em jornal por falta de diploma, mas apenas de exercer o jornalismo em sentido estrito, como profissão, em caráter permanente.

A verdade é outra: a otimização da liberdade de informação não depende da extinção da obrigatoriedade do diploma. Outros fatores, sim, é que são determinantes, como a ampliação do acesso às ondas estatais de rádio e televisão pela adoção de políticas que impeçam a sua concentração nas mãos de poucos, ou o controle rígido da publicidade oficial que costumeiramente se destina a comprar o silêncio de maus empresários da comunicação sobre os crimes, as omissões, os erros e a incompetência de autoridades públicas. Portanto, a relação de causa e efeito entre número de jornalistas e amplitude da liberdade, suposta pelo Supremo Tribunal, não só se ressente de demonstração, mas é implausível e irrelevante. Não havia, portanto, como o Tribunal pressupor a norma de inexigibilidade da formação superior da premissa hipotética de que se trata de uma condição de realização da própria liberdade de informação.

O contexto normativo ao qual se chega é o seguinte. Primeiro: não existe norma constitucional expressa vedando a exigência do diploma em curso superior para o profissional do jornalismo. Segundo: há norma constitucional transferindo para o legislador ordinário o poder de dispor sobre condições para o exercício de profissões. Terceiro: existe lei ordinária condicionando a atividade jornalística à formação superior. Quarto: a opção do legislador ordinário, conquanto passível de controvérsia, não pode ser qualificada como um ato insano, destituído de fundamento racional ou razoável. Quinto: a cláusula geral da liberdade de expressão não permite deduzir, salvo temerariamente, uma norma específica de inexigibilidade do diploma. O resultado é que a lei do diploma de jornalismo não é incompatível com a Constituição simplesmente porque a Constituição não regula a matéria. A lógica é singela. É impossível cogitar de um conflito entre a lei ordinária que dispõe (sobre a exigência do diploma) e a lei constitucional que não dispõe (sobre a inexigibilidade), já que não pode haver conflito entre uma disposição e uma não-disposição, entre uma norma e uma não-norma.

Na linguagem de um jornalista, fica fácil compreender o que fez então o Supremo Tribunal. No lugar da não-norma, ele pôs uma norma de fantasia (a da inexigibilidade) e, assim, provocou o conflito que antes de seu pronunciamento não existia, mas que foi fabricado somente naquele instante. Na linguagem de um advogado, a mesma idéia poderia ser assim traduzida: o Supremo Tribunal Federal não declarou um conflito normativo pré-existente, mas constituiu o conflito inexistente. Qualquer que seja o estilo da explicação, o procedimento é impróprio porque juízes estão autorizados a desenvolver as normas constitucionais, e não a fazê-las, forjá-las, inventá-las.

Logo, inconstitucional não é a lei do diploma, mas a decisão que a fulminou. Sob o pretexto do reconhecimento de uma incompatibilidade entre lei ordinária e norma constitucional, sob a aparência de uma intervenção legítima de natureza jurisdicional, talvez sob o domínio de uma surpreendente ingenuidade, os juízes do Tribunal, excetuado o Ministro Marco Aurélio, produziram e impuseram, como fonte originária do direito, uma regra nova, por razões, no fundo e ainda que inconscientes, de mera divergência e contrariedade em relação à regulação jurídica vigente. Honestas que fossem as intenções, o Tribunal, muito gravemente, usurpou prerrogativas legislativas, exorbitou das suas próprias e excedeu limites que se deve auto-impor espontaneamente a fim de evitar o mal da sua transformação num colégio de déspotas iluminados.

Nada do que dito foi implica afirmar que a sujeição da atividade jornalística à obrigatoriedade do diploma não possa ser questionada, flexibilizada ou mesmo revogada. Pode, sem dúvida, mas no nível da política, que é o nível do debate democrático, das decisões da sociedade, do exercício da soberania do povo, único titular do poder de produção originária do direito constitucional e infraconstitucional. O que é censurável é a supressão da instância política por uma autoridade judiciária que parece não se satisfazer e contentar com a nobre missão de ser a guardiã da ordem jurídica, mas que, para além disso, se deixa atribuir a si própria o poder absoluto de outorgá-la.

O Supremo tem, entre seus juízes, grandes valores, mas esta é a pior decisão de sua história recente. À margem de quaisquer evidências de uma real situação de incompatibilidade entre a lei ordinária e a lei constitucional, manipulou os textos jurídicos implicados segundo preferências subjetivas, dando-lhes uma exegese tendenciosa, ao modo de muitos intérpretes eclesiásticos do direito canônico. Não poderia tê-lo feito assim levianamente porque, no fim das contas, o que estava em jogo era uma decisão prestes a exterminar a dignidade de um diploma de curso superior e a causar um impacto intenso na ordem vigente e nas instituições, relações, direitos e aspirações constituídas legitimamente sob a sua égide há exatos quarenta anos.

* Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Procurador do Estado de Santa Catarina. Bacharel em Jornalismo e Direito. Mestre e Doutor em Direito, com Pós-Doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, NY, Estados Unidos. Autor do livro Fundamentos da Liberdade de Expressão (Insular, 2008).