domingo, 21 de dezembro de 2008

Imprensa e subcelebridades

João José de Oliveira Negrão

Marcelo Silva, 38 anos, ex-policial, morreu supostamente por overdose de cocaína, num quarto de hotel. Para qualquer editor, quando muito isso viraria uma nota, num jornal de circulação nacional, ou uma matéria interna, no caderno policial, de no máximo umas 40 linhas, talvez com direito a chamada de capa na dobra inferior, num jornal local (desde que da cidade onde o fato tivesse acontecido).

Mas a morte de Marcelo Silva ganhou, na semana passada, a capa de duas das principais revistas semanais de “informação”, Veja e Época, além de destaque em outros veículos “sérios”. As revistas e os programas de celebridades, então, não falaram de outra coisa. Até o pretensiosamente intelectualizado Saia Justa, do GNT, dedicou-se ao tema. Qual a diferença entre um Marcelo Silva qualquer, genérico, e este específico? O ex-policial foi casado por alguns meses com uma atriz global, 29 anos mais velha que ele.

O casamento de Suzana Vieira com Silva foi tornado público. Os percalços da relação foram tornados públicos. O fim do casamento foi tornado público. Isso tudo por uma mídia que virou uma indústria de celebridades, subcelebridades e celebridades adjuntas, na qual a distinção entre o jornalismo “sério” e o de “fofocas de vida de artista” é cada vez mais borrada.

Muitos veículos e editores se escudam numa pretensa sabedoria de que “isso é notícia” e que o público tem o “direito” de saber para defender tal decisão editorial. Com isso, liqüefazem o papel histórico do jornalismo na construção da sociedade democrática e, pior do ponto de vista da sobrevivência, abrem mão do futuro, pois os cidadãos estão cada vez mais cansados dessa superficialidade.

A militância midiática neoconservadora

Por Luis Nassif

Publicado pelo Observatório da Imprensa. Reproduzido do blog do autor, 15/12/2008; título original "O Judas da Semana Santa"

Esta semana ocorre em Salvador a XXXVI Reunião do Conselho Mercado Comum e Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul. Há um conjunto de temas técnicos relevantes a serem tratados. Segundo a página do Itamarati:
"Entre as iniciativas a serem tratadas na área econômico-comercial, encontram-se a criação do Fundo Mercosul de Garantias para Micro, Pequenas e Médias Empresas e do Fundo de Agricultura Familiar do Mercosul, a eliminação da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum e a distribuição da renda aduaneira e o Código Aduaneiro do Mercosul. Está prevista, ainda, a assinatura de acordo comercial preferencial entre o Mercosul e a União Aduaneira da África Austral".

Aí ligo na CBN, na vinda para o trabalho e ouço Lúcia Hipólito falando da encrenca que será essa reunião, porque alguns países latino-americanos defendem a auditoria na dívida externa. E, como o PT defendia essa tese antes de Lula ser eleito, ela não sabe qual será o comportamento do presidente Lula nessa reunião.

Provavelmente confundiu essa reunião com a Cúpula Social dos Povos do Mercosul, uma espécie de reunião paralela dos movimentos sociais, sem nenhuma ingerência na reunião oficial. Mas sempre suas confusões vão em uma direção única.

Há uma crítica conservadora consistente sendo feita a Lula, há intelectuais conservadores respeitados com inúmeros reparos à ação do governo. Mas esse neo-conservadorismo midiático optou pelo caminho mais fácil, do show primário, populista, demagógico, dos quais o luminar maior tem sido Demétrio Magnoli, com análises que têm o brilho de um abajur neon.

Pescadores de irrelevâncias

O país, o mundo em um processo inédito de transformações relevantes, uma avenida de temas contemporâneos a serem explorados. Mas os "cientistas" do show se limitam cotidianamente a criar ficções – o petismo pré-2002, o marxismo, o Foro São Paulo – e, a partir delas, encaixar seu discurso. Lembram muito a piada de um médico que, para qualquer doença, tascava dosagens maciças de um remédio que gerava problemas renais. Alertado para isso, explicou: "É que eu só entendo de doenças renais mesmo. Assim, trago a doença para o meu campo".

Os personagens criticados existem, não tem relevância alguma no quadro político atual, menos ainda no governo e servem para apenas uma coisa: fornecer o álibi para o discurso raso desses comentaristas. E o mise-en-scène é completado com as credenciais acadêmicas dos analistas, que são apresentados como intelectuais, cientistas.

Eles até podem ser, mas em outro canto. Na mídia, fazem parte do grande show de pescar irrelevâncias para sua militância midiática – que não é levada a sério por nenhum intelectual que se preze, seja de esquerda ou conservador.

O uso indevido das concessões de TV

Por Jonas Valente

Também publicado pelo Observatório da Imprensa. Reproduzido do Observatório do Direito à Comunicação, 17/12/2008; título original "Arrendamento de espaço de programação evidencia uso indevido de outorgas de TV"

Ao sintonizar qualquer canal da Rede Bandeirantes no horário nobre, por volta das 21h, será possível ver o Show da Fé, comandado pelo missionário R. R. Soares. O programa da Igreja Internacional da Graça de Deus não é uma produção própria da emissora, tampouco uma produção independente que o grupo adquire pela sua qualidade, mas sim um dos expoentes de um novo fenômeno que vem se tornando uma prática corrente por parte de várias TVs: o arrendamento de espaços na programação.

Segundo dossiê preparado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social a partir de denúncias produzidas por diversas entidades da sociedade civil [ver "Dossiê reúne denúncias sobre mau uso e gestão irregular de concessões de TV"], este tipo de "negócio" constitui um uso indevido e abusivo das concessões públicas de radiodifusão. "O arrendamento parcial ou total contraria totalmente o espírito da lei", afirma o documento.

A afirmação baseia-se no fato das emissoras estarem tomando para si uma prerrogativa do Estado de conceder a outorga, ou seja, definir quem pode utilizar um canal do espectro eletromagnético (por onde são transmitidos os sinais de rádio e TV) para distribuir uma programação. Com o arrendamento, são as emissoras – e não a União – que decidem quais empresas ou organizações podem acessar parte do tempo do canal cuja exploração foi dada a elas, concessionárias, somente.

Outro problema grave é o fato de uma concessionária fazer uso de um bem público, o espectro eletromagnético, para obter lucros deixando de prover o serviço objeto da concessão, no caso, a programação de TV.

O texto sustenta que o aluguel de espaços na programação deve ser considerado inválido mesmo que não haja uma proibição expressa no arcabouço legal da comunicação social eletrônica. Na avaliação dos signatários do dossiê, a legislação brasileira relativa à concessão de serviços públicos deve ser utilizada como parâmetro para demonstrar a omissão flagrante nas normas específicas que disciplinam a radiodifusão.

"A comparação com as outras concessões públicas – em que a subconcessão só é permitida se prevista no contrato, autorizada pelo poder concedente e antecedida de concorrência pública – nos permite dizer que o silêncio da lei de radiodifusão sobre a matéria não deve ser entendida como um consentimento, mas como uma não autorização", argumentam os autores do documento.

Para ser coerente com a normatização dos serviços públicos, a prática do aluguel de espaço de programação, conclui o dossiê, só poderia ser admitida caso houvesse autorização do Executivo Federal e os locadores fossem escolhidos por meio de uma concorrência pública com normas e critérios rígidos e objetivos.

Ocupação a serviço de Deus

O principal locador de espaços na programação são os grupos religiosos católicos e evangélicos. De acordo com o dossiê entregue pelas entidades, a Rede Bandeirantes repassa 7 horas e 30 minutos de seu tempo diário para a Assembléia de Deus e à Igreja Internacional da Graça de Deus, sendo 5 horas e 30 minutos para a primeira e 2 horas para a segunda. O Canal 21, também do grupo Bandeirantes, recentemente passou a arrendar 22 horas diárias de sua programação à Igreja Mundial do Poder de Deus.

Segundo nota da coluna do jornalista Daniel Castro na Folha de S. Paulo (18/9/2008), a "campeã" do aluguel a igrejas é a Rede TV!, que subloca 58 horas semanais a este tipo de organizações.

A Record aluga seis horas da sua programação à Igreja Universal do Reino de Deus. No entanto, a rede deve ser vista de maneira diferenciada das anteriores, uma vez que é o próprio dirigente máximo da igreja, bispo Edir Macedo, quem decide o que vai ao ar na Record. Ou seja, o arrendamento, neste caso, configura-se como uma trama ainda mais complexa no jogo de burlar a legislação que caracteriza os contratos de aluguel de espaço na TV.

Os retornos obtidos pelas emissoras são bastante altos e contribuem fortemente na cesta de receitas mensais. De acordo com Daniel Castro, o arrendamento do Canal 21 à Igreja Mundial do Poder de Deus deve render R$ 420 milhões nos próximos cinco anos. Já a locação da 5 horas e meia na Band pela Assembléia de Deus custará R$ 336 milhões por quatro anos. Ainda na Band, o espaço alugado por R.R. Soares injeta nos cofres da emissora R$ 5 milhões por mês.

Estado laico, mídia laica?

Para o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador da área Venício Lima, além do problema do arrendamento, o aluguel de espaços nas programações de redes por grupos religiosos também coloca dúvidas sobre a legitimidade da presença deste tipo de organização na radiodifusão.

"Um serviço público que, por definição, deve estar `a serviço´ de toda a população, pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive, ou sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?", questiona no artigo "Estado laico e radiodifusão religiosa", publicado no Observatório da Imprensa (23/9/2008).

Na avaliação de James Görgen, coordenador do projeto Donos da Mídia, a resposta é negativa. "É flagrante o desrespeito das empresas que loteiam sua grade de programação para a transmissão de programas religiosos ou de televendas em relação ao Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto 52.795/63) e à Constituição Federal de 1988, que prevêem finalidades informativas, educativas, artísticas e culturais para os canais de rádio e TV", diz o pesquisador. E completa: "Portanto, não há previsão de uma finalidade religiosa – seja católica, evangélica ou neopentecostal – para a programação de ambos os serviços. É quase surrealista o fato de existirem vedações a esse conteúdo e mesmo assim termos pelo menos dez redes nacionais de televisão no país dedicadas exclusivamente à transmissão de conteúdo religioso."

Ocupação a serviço das vendas

Outro ente que vem ocupando as grades de programações das emissoras são os grupos que vendem produtos pela televisão. Segundo levantamento realizado pelo Intervozes, coordenado por Diogo Moyses, São Paulo é um dos espaços onde isso ocorre de maneira intensa. A Bandeirantes aluga, aos sábados pela manhã, 3 horas para uma das empresas que realizam este tipo de negócio. Já a TV Gazeta veicula, mediante locação, o programa Best Shop por 2 horas e 30 minutos todas as manhãs e 5 horas e 30 minutos durante as madrugadas.

Mas a emissora com maior incidência é a Mix TV, que ocupa sua grade com os chamados "infomerciais" durante 20h. Em seguida vem a RBI, que arrenda 15 horas para shows de televendas. Na avaliação das entidades signatárias do dossiê, apresentado na audiência sobre renovação das concessões de rádio e TV realizada na Câmara em novembro, a sublocação de espaços para vendas de produtos deve ser entendida como negociação de espaço publicitário.
Neste caso, ele deve ser considerado ao avaliar o limite máximo de 25% do tempo diário para este tipo de conteúdo presente no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. Caso o Ministério das Comunicações tivesse disposição em realizar de fato este tipo de fiscalização, fica evidente o desrespeito a este limite seja daqueles canais que veiculam mais do que 25% do seu tempo com "infomerciais", seja naqueles que ultrapassam o limite somando televendas e anúncios publicitários ordinários.

Na avaliação de Diogo Moyses, os contratos de aluguel de espaços para empresas de televendas incorrem em três ilegalidades: sublocam a grade de programação, extrapolam o limite permitido de publicidade e não cumprem a determinação constitucional de dar prioridade às finalidades culturais, educacionais e informativas. "Além de ilegal, é algo absolutamente imoral", afirma.
Para ele, a difusão cada vez maior deste tipo de prática mostra a ausência crônica de regulamentação e fiscalização nas comunicações brasileiras. "O aluguel da grade de programação das emissoras é um dos maiores símbolos do descontrole absoluto do Estado sobre a exploração do serviço", avalia. "O mais grave é que o Ministério das Comunicações, que deveria fiscalizar as emissoras, finge que não é com ele. Com isso, ser concessionário de radiodifusão, além de um negócio lucrativo, tornou-se extremamente fácil: basta ter obter a outorga e lotear os horários da emissora. Quem não gostaria de ter um negócio desses?", questiona.

À espera de providências

O conjunto de denúncias apresentado na audiência foi protocolado na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, no Ministério das Comunicações e entregue ao representante do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União presentes ao encontro. Resta saber se, com tão flagrantes desrespeitos e ilegalidades, serão tomadas providências por parte destes órgãos.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O jornalismo e as políticas públicas

Por Felipe Shikama

O período de campanha eleitoral, especialmente nos municípios, pode ser definido como uma espécie de abertura do “mercado de idéias” (e promessas) personificadas em candidatos alinhados a um conjunto amplo de carga ideológica — evidentemente intrínseco a seu respectivo partido político. A partir deste pressuposto é que se assume o elevado grau de importância do papel desempenhado pelo jornalismo numa sociedade democrática contemporânea.

Tão importante quanto a história, a chamada vida pregressa do candidato, e sua conduta ética, os jornais são agentes decisivos “sine qua non” na publicação das explanações dos diversos programas de governo, apresentados pelos concorrentes ao mandato público.

Por meio de sua cobertura, o jornalismo também ocupa papel decisivo para o eleitor, na medida em que é capaz de apontar não apenas quais, mas também de que forma, as intervenções da realidade poderão ser tomadas. Estas tomadas de decisão, construídas principalmente por meio de políticas públicas, e tidas como as mais prioritárias, são desempenhadas a rigor pelo chefe do Executivo.

Na prática, as políticas públicas são ofertas de bens, serviços, programas ou ações dirigidas a determinado público-alvo a fim de garantir a efetividade de afirmações de direitos, sejam eles individuais (civis), políticos, culturais, econômicos ou sociais — esta última, ainda com muito território para ser ocupado.

Neste contexto, uma cobertura eleitoral qualificada por parte dos jornais locais pode contribuir de forma saudável para a elevação dos índices de desenvolvimento humano do município, operando em dois aspectos centrais: por um lado, ao estabelecer o "agendamento" das questões prioritárias e ainda carentes de políticas públicas, e por outro, ao assumir o papel de freios-e-contrapesos, na medida em que fiscaliza, de forma plural, as tomadas de decisão.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Afinal, o que foi e quem o apoiou?

Por Cid Benjamin

Reproduzido do Blog dos Blogs, do jornalista Tales Faria

O jornalista Cid Benjamin foi um dos sequestradores do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Aliás, foi ele quem teve a idéia do sequestro, junto com o hoje ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. Cid publicou ontem no JB um interessante artigo sobre aqueles anos, no qual afirma que a ditadura militar teve suas alças de sustentação na chamada sociedade civil, e principalmente na imprensa. Veja o texto: (Tales Faria)


"Tornou-se lugar comum dizer que o AI-5 significou um golpe dentro do golpe e abriu caminho para os anos de chumbo da ditadura militar. É a verdade.

Afinal, se para derrubar o presidente João Goulart havia unidade entre os militares golpistas, não havia consenso entre eles sobre o que fazer depois de afastado “o perigo de uma república sindicalista”.

Uns, como Castello Branco, queriam a volta a um regime civil em prazo não muito longo. Seu objetivo era, retirando os militares da linha de frente, marchar para uma democracia restritiva, com “salvaguardas” que impedissem avanços no caminho de reformas democráticas e sociais mais de fundo.

Outros, da autodenominada “linha-dura”, desejavam estender no tempo o regime recém-implantado e aprofundar seu caráter ditatorial e suas características mais brutais.
A edição do AI-5 coroou a vitória da extrema-direita nessa disputa. Quase tão pueril quanto culpar o inexpressivo discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara pelo endurecimento do regime seria responsabilizar a resistência estudantil ou as incipientes ações de grupos armados que começavam a se organizar para combater a ditadura. O fechamento teve sua origem dentro do próprio regime.

Culpar os que resistiram à ditadura pelo advento do AI-5 e dos anos de chumbo equivale a responsabilizar os maquis pelas atrocidades das tropas nazistas na França ocupada.
Dito isto, dois aspectos relacionados com a ditadura e o AI-5, em particular, devem ser lembrados.

Primeiro: hoje, quando a questão da tortura volta à cena, por conta do debate acerca da impunidade ou não dos torturadores, é preciso destacar a relação direta do AI-5 com a institucionalização da tortura na ditadura. Ao proibir a concessão de habeas corpus para presos políticos, o regime deu carta branca aos carrascos. Uma vez presa, a pessoa podia ficar incomunicável pelo tempo e nas condições em que o aparelho repressivo determinasse.

Em muitos casos ­ e nem vamos falar aqui dos “desaparecidos” políticos ­ as prisões sequer eram legalizadas imediatamente. Dou meu próprio exemplo: fui preso em 21 de abril de 1970. Mas durante 20 dias permaneci no limbo; a oficialização da prisão deu-se apenas em 11 de maio. E, depois, continuei incomunicável e sujeito a todo tipo de violência no DOI-Codi. Mas aí, pelo menos, já existia oficialmente como preso.

Por isso, nunca é demais repetir: a transformação da tortura em política de Estado só foi possível com o AI-5.

A segunda questão a ser destacada é que a implantação da ditadura e, posteriormente, a edição do AI-5 não foram obras exclusivas dos militares. Que ninguém se iluda: a ditadura militar teve apoio em parcelas da sociedade civil.

Aliás, não é difícil ver que não poderia ser de outro modo. Pela sua dimensão e complexidade, uma sociedade como a brasileira não viveria 21 anos sob uma ditadura se esta não tivesse um mínimo de sustentação fora dos quartéis.

O apoio ao golpe e, posteriormente, à ditadura e ao AI-5 na sociedade civil foi majoritário? Certamente não. Mas existiu.

É importante ressaltar este fato, porque, da forma como a história às vezes é contada, parece que os militares eram como marcianos, ditando regras a um país que, todo ele, aspirava voltar à democracia. Não foi bem assim.

O grande capital, tanto nacional como estrangeiro, o latifúndio e segmentos das camadas médias (estes últimos, é verdade, de forma mais oscilante) tiveram expressivos ganhos materiais e apoiaram decisivamente a ditadura.

Recentes reportagens publicadas na grande imprensa desvendando apoios civis a atos dos militares são positivas ­ afinal, sempre é bom um país se reencontrar com a verdadeira história. Nelas vê-se que, até mesmo entidades respeitadas por sua tradição democrática ­ como OAB e ABI ­ fraquejaram em certos momentos e estenderam a mão aos ditadores.

Mas se é bom destapar este baú, está faltando algo: esclarecer também o papel da grande imprensa. Em sua maior parte, ela apoiou o golpe de 64 e, depois, o AI-5. Aliás, no caso deste último, o velho JB foi uma honrosa exceção, com uma primeira página histórica, editada por Alberto Dines. Por conta do AI-5, ela lembrava que a véspera tinha sido o Dia dos Cegos e apresentava a previsão meteorológica: “tempo negro” e “temperatura sufocante”.

Mas ­ é preciso que se diga ­ na grande imprensa tal comportamento foi exceção. Por isso, lembrar os editoriais dos maiores jornais do país em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte ao AI-5, certamente contribuiria também para a memória nacional."

Aqui em Sorocaba também tivemos editoriais recentes criticando o AI-5 e a ditadura militar. Mas vale a pena conhecer a posição dos nossos jornais locais quando do golpe, em 64, e da decretação do Ato Institucional, em 68. Eles, então, aderiram à quebra da constitucionalidade. (João José de Oliveira Negrão)

Ministério Público contra Rede TV!

Por João José de Oliveira Negrão

Há duas semanas, o Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública contra a Rede TV! -- requerendo uma indenização por danos morais coletivos de R$ 1,5 milhão --, por conta da cobertura que o “jornalismo” daquele canal de televisão fez do seqüestro da adolescente Eloá Pimentel, assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Alves, em Santo André, na Grande São Paulo.

Como foi amplamente divulgado, durante o seqüestro, que durou cerca de 100 horas, a apresentadora e jornalista Sonia Abrão, no programa A tarde é sua, entrevistou, ao vivo, o seqüestrador Alves e sua vítima, Eloá, de apenas 15 anos. Policiais envolvidos no caso e outros especialistas foram unânimes em afirmar que tal intromissão na negociação – feita por um repórter e uma apresentadora sem qualquer qualificação para o processo de negociação em curso – foi altamente prejudicial.

A Rede TV!, como sempre acontece, brandiu a liberdade de expressão para se defender. A assessoria de comunicação do canal considerou “a iniciativa do MPF uma forma velada de censura”. É um escárnio. O que aconteceu não tem nada a ver com o direito à informação, mas tratou-se simplesmente de um oportunismo da Rede TV! na busca de alguns pontinhos de audiência.

A luta histórica pela liberdade de expressão e contra a censura deve ser lembrada, no período em que “comemoramos” os 40 anos do AI-5, que significou o cerceamento de todas as liberdades formais pela ditadura dos generais. E não pode ser reduzida a essa banalização que boa parte dos meios de comunicação querem submetê-la.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Terminologia e ideologia: as palavras mudam, mas o preconceito...

Por Felipe Shikama

Para comemorar os 18 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) lançou o site do projeto "ECA 18 anos". Lá, jornalistas e interessados têm à disposição dezenas de sugestões de pauta, clippings, artigos e textos base relacionados ao marco legal que, em tese, reconhece e assegura as crianças de nosso país como sujeito de Direitos.

Outra categoria disponível no site, bastante interessante aos profissionais da redação, é o “Guia de Cobertura” onde repórteres incumbidos de cobrir pautas relacionadas à infância podem se “armar” rapidamente, e com facilidade, antes de ir às ruas.

Além de importantes dicas de abordagem, extraídas de orientações do Unicef e da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), o repórter encontra um pequeno glossário com terminologias corretas acerca de verbetes freqüentemente mal empregados quando o assunto é infância, cidadania e garantia dos Direitos Humanos.

Exemplo local
Para verificar o emprego correto ou não de determinadas terminologias em jornais da região — isto é, se vão de encontro as noções apontadas pelo ECA —, realizei uma breve pesquisa, a título de ilustração, no site do jornal Cruzeiro do Sul.

Por meio do buscador embutido na página digitei a palavra "Criança". Excluindo reportagens oriundas de agências de notícias, apareceram títulos afáveis como “Crianças trazem cartão de Natal animado”. Já quando o verbete buscado é "Menor", o ângulo se inverte: “Trabalho de menores terá fiscalização mais rigorosa” foi mais recente.

Conforme o Guia de Cobertura da Andi, o emprego do termo “menor” referindo-se a crianças, moços e moças, adolescentes, jovens, reproduz o reacionário conceito de incapacidade na infância, sendo não só estigmatizante para esta parcela da sociedade quanto discriminatório.

A simples inversão do termo, praticada pelo Cruzeiro, acaba alimentando a velha idéia de que ser “menor” significa não ter dezoito anos e, portanto, não ter capacidades por não ter atingido um estágio de plenitude, isto é, de seus próprios direitos.

A simples comparação pode parecer excesso de preciosismo. Mas é de se perguntar: por que freqüentemente vemos nos jornais a clara distinção no tratamento entre crianças que pertencem a condições sociais opostas na sociedade?

Por que os pequenos leitores do Cruzeirinho, por exemplo, são tratados como crianças, enquanto que crianças pobres, noticiadas em conflitos com a lei ou em privação de liberdade, são classificadas como "menores"?

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

AVANÇOS SOCIAIS: Jornais, classe média e redução da miséria

Por Venício A. de Lima
Publicado originalmente no site Observatório da Imprensa em 12/8/2008
A Associação Mundial de Jornais (WAN) divulgou recentemente os resultados de sua pesquisa anual sobre o comportamento da indústria de jornais. Embora a circulação global de jornais pagos tenha crescido (2,7%) em 2007, ela vem caindo sistematicamente tanto na União Européia (5,91%) quanto na América do Norte (8,05%), nos últimos cinco anos. Por outro lado, a circulação cresceu na América do Sul (6,72%) e, em particular, no Brasil, que lidera não só o crescimento anual (11,80%) como o crescimento dos últimos cinco anos (24,93%).
[O relatório completo da pesquisa não está disponível gratuitamente. O longo release de sua divulgação, no entanto, pode ser acessado no original em inglês ou na versão em português.].
É interessante observar que os dados se referem apenas a jornais pagos, não estando incluídos nem os jornais gratuitos nem os jornais online. Em algumas regiões, a introdução de um e/ou de outro pode alterar completamente os resultados. Por exemplo: jornais gratuitos somam quase 7% de toda a circulação mundial e 23% apenas na Europa. Se combinada com jornais gratuitos, a circulação na União Européia aumentou 2% em 2007 e 9,61%, ao longo dos últimos cinco anos. Já nos EUA, a audiência dos jornais cresceu 8% quando se combina impresso e online, em 2007.
Primeira lição: esses números devem servir de advertência para os riscos da transposição automática de resultados de pesquisas sobre consumo de jornais em países da Europa e/ou nos Estados Unidos e aplicá-los ao Brasil (o que, infelizmente, ainda acontece com certa freqüência).
A "fase" que vivemos – em relação aos jornais pagos, gratuitos e online – é muito diferente da que se vive nesses países.

Como explicar o aumento da circulação de jornais no Brasil?
Matéria publicada no Estado de S.Paulo ("Circulação de jornais cresce 8,1% no semestre", edição de 4/8/2008) dá conta de que a circulação dos 103 jornais pagos associados ao Instituto Verificador de Circulação (IVC) cresceu 8,1% no primeiro semestre de 2008, em relação ao mesmo período de 2007. Os novos dados do IVC confirmam também o crescimento dos chamados "jornais populares", isto é, aqueles destinados às classes C e D.
O Estadão informa que os 30 maiores títulos do país são responsáveis por mais de 80% da circulação total e que, nesse grupo, destacam-se exatamente os "jornais populares". Dentre eles, o crescimento mais espetacular foi do mineiro Super Notícia: no primeiro semestre de 2007, tirava uma média de 179.981 exemplares/dia e no mesmo período deste ano chegou a 301.362 – isto é, um aumento de circulação de 67%.
Se ainda existia alguma dúvida, duas pesquisas divulgadas no dia na terça-feira (5/8) ajudam indiretamente a compreender o que vem ocorrendo no mercado brasileiro de jornais.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou o estudo "Pobreza e riqueza no Brasil metropolitano" – que se apóia em pesquisas do IBGE, a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizadas nas seis principais regiões metropolitanas do país entre 2002 e 2008. A constatação foi de que cerca de 3 milhões de pessoas deixaram a situação de pobreza no período, isto é, passaram a ter renda per capita superior a meio salário mínimo por mês. Isso significa uma redução da pobreza de 32,9% da população em 2002 para 24,1%, em 2008 (disponível aqui).
Por outro lado, o Centro de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas divulgou os resultados de um levantamento feito com base na PME do IBGE nas mesmas seis regiões metropolitanas, no período de abril de 2002 a abril de 2008 – "A nova classe média" (disponível aqui). Verificou-se que, nos últimos 6 anos, 19,5 milhões de brasileiros passaram a fazer parte da classe média, isto é, aquele grupo com renda domiciliar per capita entre R$ 1.064 e R$ 4.591. Hoje, esta nova classe média já inclui 51,89% de todos os brasileiros (contra apenas 42,82%, em 2002).
Entre as seis regiões metropolitanas estudadas, quatro estão acima da média nacional (51,89%): São Paulo (54,68%), Belo Horizonte (53,9%), Porto Alegre (53,67%) e Rio de Janeiro (52,42%). A capital de Minas Gerais foi a que mais reduziu a miséria no período (menos 40,8%).
Não deve, portanto, ser mera coincidência que o "popular" Super Notícia tenha aparecido em 2004, custe 25 centavos e venda mais de 300 mil exemplares/dia exatamente na região metropolitana de Belo Horizonte.
Dimensão escrita do espaço público
Em artigo publicado neste Observatório ("Imprensa Brasileira, 200 anos: História de continuidade e de ruptura", edição nº 488), argumentei que existe uma relação entre o aumento de circulação dos "jornais populares", a diminuição da pobreza e a expansão da classe média. Além disso, lembrei que, apesar de ainda existir espaço para casos policiais, os "jornais populares" se voltam hoje para pautas como serviço público, direito do consumidor, entretenimento, trabalho, saúde, transporte e educação. Uma espécie de "serviço para a cidadania".
Todo esse processo, na verdade, é conseqüência de muitas mudanças, algumas silenciosas, que vêm ocorrendo no nosso país nos últimos anos.
A inclusão de parcelas significativas da população brasileira que historicamente estiveram ausentes da dimensão escrita do espaço público criado e reproduzido pela grande mídia é, certamente, uma dessas conseqüências.
Venício A. de Lima é Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).

terça-feira, 24 de junho de 2008

O Jornalismo e as categorias gramscianas

Por Felipe Shikama

Se os meios noticiosos são capazes de dar sentido a realidade, na medida em que definem situações e catalogam acontecimentos tidos como “normais” ou “patológicos”, é na ideologia, como mecanismo simbólico, conforme Jorge Pedro Sousa, que o sistema de idéias cimenta a coesão e a integração social.
A construção desse alto grau de consenso inclinado a uma visão de mundo dominante, em Gramsci, é definida na categoria “hegemonia”. Isto é, a capacidade de uma classe manter sua dominação e, não apenas por meio da força, de exercer sua liderança moral e intelectual sobre as outras.
A hegemonia seria vista como um processo conflituoso e dinâmico que teria de continuamente incorporar e absorver valores diferentes e, por vezes, opostos, bem como normas freqüentemente dispares. Para Willians (1977), a hegemonia não subsiste na passividade; pelo contrário, necessitaria de se renovar, recriar defender e modificar continuamente, o que se encontraria expresso no limitado debate público que ocorre dentro dos órgãos de comunicação social.
E a noção de movimento permanente dessa primeira categoria gramsciana é fundamental para avançarmos na arena real onde as disputas pela hegemonia de corações e mentes acontecem. Essa arena conflituosa, conforme Gramsci, é a sociedade civil. Porém, antes é necessário fazermos uma breve revisão, sem a pretensão de esgotar o assunto, no conceito de “Estado” ampliado pelo revolucionário italiano.

Ao contrário das primeiras definições marxistas, na qual o Estado, em seu sentido restrito, é uma esfera burocrática burguesa não só desnecessária como maléfica a um modelo mais igualitário; Gramsci amplia este sentido entendendo que o Estado é, na verdade, um equilíbrio entre “sociedade política” e a “sociedade civil”. A sociedade política é, então, o Estado em sentido restrito ou “Estado-coerção”, pois se constitui, entre outros elementos, por seus estratos coercivos como polícia, poder judiciário etc. Já a “sociedade civil” é o espaço vulgarmente chamado de privado, onde sem coerção, a hegemonia se articula por meio da ideologia.

Tendo o Estado eu seu sentido ampliado, Gramsci faz uma distinção entre Estado do “Oriente” e do “Ocidente”. Os Estados de formação “oriental” são caracterizados pela sociedade política sólida e altamente coerciva e da sociedade civil desorganizada. “No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa”. Já os Estados de formação “ocidental” são marcados pela capacidade organizativa da sociedade civil e a legitimidade de seus estratos privados como jornais, sindicatos, escolas, etc.

Vale lembrar que esta distinção entre ‘oriental e ocidental’ não é simplesmente geográfica, como explica Carlos Nelson Coutinho, a 'ocidentalidade' de uma formação social é o resultado de um processo histórico. Gramsci não se limita a registrar a presença sincrônica de formações do tipo 'oriental' ou 'ocidental', mas indica também os processos histórico-sociais, diacrônicos, que fazem com que uma formação social se torne 'ocidental', ou, mais concretamente que passe a ter um Estado 'ampliado', no qual exista uma 'justa relação' entre Estado e sociedade civil.
Em uma formação “oriental”, por exemplo, a revolução bolchevique usou como estratégia para o socialismo uma “guerra de movimento”; isto é, um ataque frontal ao Estado-coerção, mesmo que utilizando da falsa suposição de um iminente colapso do capitalismo. Estratégia que não surtiria efeito nos Estados “ocidentais”, pois, nesse caso, a “sociedade política” é, em determinados momentos, subordinada à “sociedade civil” que aqui já é mais articulada e mais sólida.
É exatamente na arena da sociedade civil aonde os estratos organizativos privados vão, na luta pela uniformidade de corações e mentes, se articular na disputa pela conquista de uma direção política com maior grau de consenso da sociedade.
Esses estratos, em especial os jornais, são definidos por Gramsci como “Aparelhos Privados da Hegemonia”. Isto é, [...]uma teia de instituições, relações sociais e idéias a fim de representar uma base de consentimento para certa ordem social, local onde "a hegemonia" – direção intelectual e moral – vai ser exercida, então, pelo grupo social dominante sobre os grupos aliados do bloco histórico (subalternos), mas na perspectiva de representar toda a sociedade.”

Nesse sentido, podemos afirmar que o Brasil, hoje, é um Estado ocidental dada a capacidade de organização da sociedade civil e a legitimidade de seus estratos privados, conforme Coutinho, em dados empiricamente constatáveis, como adesão aos sindicatos, crescimento das comunidades de base, incremento dos partidos políticos de esquerda. Portanto, falar hoje de fortalecimento da sociedade civil brasileira não é apenas propor um programa político, mas ao mesmo tempo, registrar uma realidade de fato. Pelas vias transversas da revolução passiva, o Brasil tornou-se uma sociedade “ocidental” madura para transformações sociais.
Este mesmo grau de “ocidentalidade” pode ser atribuído aos municípios, pois mesmo numa cidade brasileira onde a “sociedade política” tencione a usar todos os recursos coercivos para a conquista da hegemonia, também haveria resistência ou, pelo menos, possibilidade de resistência da sociedade civil à classe dirigente em um movimento contra-hegemônico.
Conforme Coutinho, a ideologia, enquanto concepção de mundo articulada como uma ética correspondente, “é algo que transcende o conhecimento e se liga diretamente com a ação voltada para influir no comportamento dos homens, o que em termos gramscianos significa dizer que a ideologia é o medium da hegemonia”, pois a “compreensão crítica de si mesmo ocorre através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois da política para chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real (...). Por isso, deve-se sublinhar como o desenvolvimento político do conceito hegemonia representa um grande progresso, não só político-prático, mas também filosófico.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Espaço público local: conflitos que não aparecem nos jornais

Por Felipe Shikama

Conforme Jean-François Tétu, o espaço público é um espaço simbólico feito de saberes e representações. A imprensa local, que se (auto) legitimou como instrumento fiscalizador delegado pela sociedade, deve exercer o papel de articulador das grandes discusões nesse espaço público local. E o "local", no entanto, não pode mais ser definido simplesmente por um único território, mas pela noção de lugar de vida.

Nas palavras de Tétu, o espaço público não remete apenas à ancoragem territorial do hábitat, mas sobretudo o lugar, onde se dão conflitos e o efeito das decisões em matéria de desigualdade de todos os tipo, de emprego (ou de desemprego), de transporte, de acesso a cultura (escolaridade), de saúde, etc. Em outras palavras, o local aparece como o lugar de verdade do "político".

Embora o discurso neoliberal defenda a convergência das atividades nacionais e locais, sob a premissa de que nenhum dos grandes problemas da atualidade podem mais ser tratados em nível nacional, mas sob outras alternativas —­sejam elas supranacionais, por exemplo, blocos econômicos; ou no que nos interessa aqui, em um nível local— o espaço público representa, independente de sua dimensão, uma arena conflituosa composta por diferentes classes, frações de classe e suas respectivas ideologias.

A questão que sugiro neste artigo é saber em que grau e como esses conflitos são representados pela imprensa local. Em semelhante estudo, tendo como objeto jornais locais franceses, Tétu alerta que no âmbito local os jornais parecem ignorar a noção de conflito e operar pela construção de um consenso, no que ele chama de "institucionalização das relações sociais". Para ele, o que mais choca quando de uma leitura atenta das páginas locais é a ausência quase total de conflitos que, entretanto, constituem uma dimensão central da vida desses grupos, como se tudo o que é o objeto de uma disputa real de poder se encontrasse neles afastado em prol do espetáculo da concordância. Mas, de modo geral, a que podemos atribuir esse consenso nas páginas dos jornais?

Durante décadas as reflexões teóricas da comunicação social se limitaram a uma perspectiva funcionalista alicerçada em estudos de natureza empirista, tendo como base filosófica o positivismo comteano — enquadrando as ciências sociais no paradigma das ciências naturais—, levado ao cabo por Durkheim e claramente revelado por Adelmo Genro Filho: "o que está em foco, na essência do próprio método, é a reprodução e a estabilidade do sistema social". Conforme Genro, o desenvolvimento dos meios de comunicação e do próprio jornalismo são analisados como processos independentes em relação ao desenvolvimento global das forças produtivas e da luta de classes, ou seja, apartados do movimeto histórico em seu conjunto. Ao contrário, os meios de comunicação são tomados como 'função orgânica' da sociedade capitalista contemporânea, entendida esta como paradigma do processo e da normalidade.

Para Genro, a "ausência de conflitos" apontada por Tétu se deve, entre outros motivos, ao "espírito pragmático” da grande maioria dos jornalistas, em parte devido a defasagem do acúmulo teórico em relação ao desenvolvimento das “técnicas jornalísticas” e, em parte, devido ao caráter insolente e prosáico que emana naturalmente da atividade.

Por outro lado, outra importante linha teórica parece contrapor-se à perspectiva funcionalista. Chamada de nova fase dos estudos jornalísticos, conforme um dos pioneiros da pesquisa do Jornalismo em língua portuguesa, Nelson Traquina, a década de 70 é marcada pelo interesse crescente da investigação da ideologia. Essa perspectiva crítica, e fortemente influenciada por autores marxistas, passa a enxergar a mídia como organismo estruturado numa visão burguesa, reprodutora da ideologia dominante. Mas, seja "integrada", de perspectiva funcionalista, ou "apocalítipica" e crítica, a limitação do papel do jornalismo como agente de interação social e, a partir dessa coesão, fabricação do consenso merece novas reflexões, afinal, devemos levar em conta o avanço da pluralidade cada vez mais intensa no jornalismo contemporâneo.

Longe de ser uma terceira via entre o "integrado" e o "apocalíptico", na velha expressão de Umberto Eco, visto que ambas perspectivas concordam que a falta da pluralidade no processo jornalístico (restringido a fontes predominantes oficiais, tecnicistas e "neutras") tende a operar pela construção do consenso hegemônico; o que deve indicar outros indícios de resposta à "ausência de conflitos" — principalmente no âmbito local — é o o tratamento dado aos interlocutores subalternizados, agora, incluídos nesse processo.

Afinal, esse “pluralismo intenso”, segundo João Carlos Correia, é resultante da emergência e da revalorização das entidades minoritárias, fazendo com que os jornais sirvam de “arena” de tensões e fragmentações da luta de classes. E o jornalismo é uma das principais instituições capazes de contribuir para construção da hegemonia, por meio da qual uma classe dominante consegue instituir uma base de consentimento para certa ordem social, na medida em que ele estabelece parâmetros cognitivos por meio dos quais as pessoas lêem e interpretam o mundo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Jornais, jornalistas e números

Por João José de Oliveira Negrão

Sempre me bati contra a frase feita de que o jornalista – ou qualquer outro profissional ou estudioso das ciências humanas – não se dá bem com números, que esta preocupação é um “desvio burocrático”. Não é. A precisão da informação e o cuidado com as cifras deve ser uma obsessão do jornalista. Se devemos checar e rechecar nomes, datas e períodos, mais ainda temos de nos preocupar os números.

Essa preocupação faltou na matéria do Cruzeiro do Sul, de 10/06/08, sobre os investimentos do governo federal em Sorocaba. O jornal simplesmente comprou sem ver – quase um ctrlc / ctrlv -- matéria publicada pela Folha de S. Paulo no dia anterior, eivada de erros. Ambos afirmam, por exemplo, que a cidade contou com apenas R$ 1.364.343,00 de verbas federais nos cinco anos do governo Lula.

Ora, bastava uma simples consulta aos arquivos do Cruzeiro do Sul para se saber que o “estudo” da Folha, reproduzido pelo centenário jornal local, estava errado. É inaceitável. É verdade que o jornalismo trabalha premido pelo tempo, que os prazos e processos industriais têm de ser cumpridos. Mas o bom senso e, muitas vezes, até mesmo o óbvio não podem ser deixados de lado.

Será que ninguém – repórter, editor, editor-chefe – percebeu que aquela quantia pretensamente investida em Sorocaba estava errada? Será que ninguém lembrou que só o campus da UFSCar na cidade custou mais do que aquilo? E o que já foi investido na despoluição do rio Sorocaba, para tratamento de esgotos? E para regularização fundiária? Tudo isso foi matéria nos jornais, rádios e tevês da cidade.

O concorrente do Cruzeiro do Sul, o Bom Dia, de 14/06/08, também errou. Ele pegou oito cidades, quatro administradas pelo PT (Araraquara, Botucatu, Porto Feliz e Santo André) e quatro pelo PSDB (Jundiaí, São José dos Campos, Sorocaba e Ribeirão Preto). Na manchete, afirma que Sorocaba recebe 20% a menos que a média das cidades “petistas”. Está errado. Pelos números apresentados pelo jornal, as quatro cidades “petistas” receberam R$ 775.428.553,09 para uma população de 1.030.560 pessoas. Isso dá um total per capita de R$ 752,43. As cidades “tucanas” receberam R$ 1.684.508.362,51 para 2.044.505 habitantes. Per capita, cada morador recebeu R$ 823,92. A manchete devia ser outra. Talvez “Lula investe mais em cidades tucanas que petistas”, que dá o mesmo número de caracteres do título original.

Como no jornalismo o erro profissional também é um erro ético, esses vacilos permitem mil elucubrações, até mesmo a suposição de que a intenção não era mesmo informar, mas confundir.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

O jornalismo na medida do possível

Por Sylvia Moretzsohn

O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.

O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.

Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.

"Guerra do Rio"

Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".

Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.

Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.

A falaciosa metáfora da guerra

Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.

"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.

Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.

Os riscos da infiltração

Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.

A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:
"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."

O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?

Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.

Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".
Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".

O apelo ao risco

Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".

Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".

A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.

Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.

A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.

Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.


(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa)
Sylvia Moretzsohn
Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

As drogas no centro do debate

Por Felipe Shikama

Num determinado momento, bilhões de acontecimentos simultâneos ocorrem em todo o mundo e todas estas ocorrências são potencialmente notícias. Só o são, porém, no momento em que alguém que fornece um relato dessas ocorrências. A obviedade descrita nessas três linhas sintetiza a natureza do jornalismo e a razão de sua existência.

Entretanto, alguns aspectos desempenhados pela atividade intelectual do jornalismo vão além da capacidade, condicionada às inúmeras variáveis, de transformar acontecimentos distintos em notícias, isto é, dar existência pública a determinado fato.

Um desses aspectos está ligado à capacidade que o jornalismo tem de pautar assuntos, sob pressupostos prioritários, para o debate público. A hipótese da Agenda Setting assume que a mídia define, para a maior parte da população, os acontecimentos significativos.

Tomemos como exemplo a campanha “Seja Usuário da Vida” articulada recentemente pelo jornal Cruzeiro do Sul. A iniciativa, com série de reportagens, palestras e debates teve como objetivo colocar o problema das drogas no centro da discussão, tanto para a sociedade quanto para o poder público.

Conforme a hipótese da Agenda Setting, se a imprensa tem uma capacidade espantosa para dizer as pessoas sobre o que pensar, ela não consegue, no entanto, dizer aos seus próprios leitores como pensar. Neste sentido, notícias de apreensão de drogas na cidade, que seriam corriqueiras no espaço do plantão policial, muitas vezes tiveram um enquadramento forçado em detrimento da campanha. No dia em que o Cruzeiro noticiou a chacina de Votorantim, no final do ano passado, um selo da campanha dividiu o espaço da matéria.

Além de cometer um equívoco de enquadramento, o jornal agiu de forma irresponsável, pois, de alguma forma, sugeriu ao leitor que os cinco jovens assassinados em um terreno abandonado seriam usuários de drogas. Fato que foi comprovado posteriormente.

Mas além do agendamento, outro aspecto fundamental desempenhado pela mídia tem a ver com o “enquadramento”. Afinal, o jornalismo oferece interpretações poderosas acerca da forma de compreender determinados acontecimentos. E qualquer interpretação desempenhada pelo jornalismo deve, obrigatoriamente, ser pautada pela maior pluralidade possível.

Outro equivoco cometido pelo Cruzeiro, ao tomar as drogas como tema prioritário, foi restringir o debate àqueles que são contra as drogas. Diz o povo que debate onde só tem corintiano não é debate... Tanto nas matérias publicadas quanto nos encontros promovidos pelo jornal, não havia um representante convidado que se manifestasse favorável a descriminalização das drogas.

Não custa repetir: o jornalismo é uma atividade intelectual. E ainda cabe lembrar: a hora em que o jornal vai “rodar” nas oficinas gráficas, os jornalistas podem até ter terminado seu trabalho, mas os efeitos sociais provocados por eles estão apenas começando.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

A imprensa toma partido

Por João José de Oliveira Negrão

As eleições para prefeitos e vereadores estão chegando. Os partidos se movimentam, as alianças começam a ganhar forma, nomes são lançados ao teste público para medirem sua viabilidade. Mas há uma força “partidária”, não legalmente organizada, que merece mais atenção por parte dos eleitores: a imprensa. Diferentes estudos, realizados por universidades paulistas, cariocas, mineiras, gaúchas e de fora do Brasil, têm demonstrado o peso que o jornalismo pode ter na decisão do voto.

Um dos mais recentes foi realizado pelo Doxa, Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública, ligado ao Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Organizado por Marcus Figueiredo e Alessandra Aldé, o estudo “Imprensa e Eleições Presidenciais: natureza e conseqüências da cobertura das eleições de 2002 e 2006” afirma que “os grandes jornais de circulação nacional, no Brasil [no caso a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo], adotam um híbrido entre dois modelos de pluralismo: formalmente, no discurso ético de autoqualificação diante dos leitores, procuram associar-se aos conceitos e rituais de objetividade do jornalismo americano, como é possível constatar nos slogans, diretrizes oficiais, manuais de redação, cursos de jornalismo. No entanto, na produção do impresso diário, o que vimos são diferenças no tratamento conferido aos candidatos, de amplificação de certos temas negativamente associados a Lula, contraposto à benevolência no tratamento de temas espinhosos relacionados a seus adversários”.

A cobertura da grande imprensa paulista dos casos do acidente na estação Pinheiros do metrô e da Alstom tem mostrado estes dois pesos e duas medidas: o governador Serra tem sido poupado. Ao contrário, qualquer problema no governo federal é logo e insistentemente associado a Lula.

Vamos tentar acompanhar neste blog, na medida das nossas parcas forças, o comportamento da imprensa local nas cidades da nossa região, para ver se tal postura se repete nas eleições para prefeitos e vereadores. Tanto quantitativamente – o espaço e o tempo dedicados aos diferentes candidatos – quanto qualitativamente – as coberturas positivas e negativas das suas atividades – deverão aparecer. Colaboradores e colaboradoras para esta empreitada serão bem vindos.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Policial “repórter” não é o mesmo que repórter policial

Por Felipe Shikama

O perfil de Sorocaba vem mudando substancialmente nos últimos anos. E graças a essas mudanças, já pode ser considerada, tendo por base diversos indicadores, uma cidade grande. Para se ter uma idéia desse crescimento, basta lembrar que Sorocaba contará com um orçamento de R$ 1 bi no próximo ano, maior do que a receita de muitas capitais brasileiras.

Esse crescimento tem se refletido no jornalismo local. É crescente o número de emissoras de TV e rádio difundidas para o mundo todo, por meio da internet, a partir de Sorocaba. Revistas dirigidas a consumidores de classe média, algumas delas segmentadas, também têm ocupado cada vez mais espaço. Tudo isso sem falar da importante chegada do jornal Bom Dia.

Apesar do avanço na quantidade de espaços para a informação, algumas emissoras de rádio, sobretudo as mais tradicionais, insistem em repetir uma forma ultrapassada e até mesmo perigosa de se fazer jornalismo policial. Talvez pela mão-de-obra reduzida (algumas emissoras contam com apenas três profissionais), talvez pela “tirania do tempo”, angústia de qualquer jornalista, ou mesmo por pura preguiça ou conveniência, as notícias policiais são elaboradas de forma “oficialesca” e amadora.

É que ao invés do repórter se deslocar às delegacias e desempenhar todo processo de construção da notícia (da captação até a edição), abre-se o microfone ao vivo para que um oficial Militar, geralmente encarregado de fazer as relações públicas da Coorporação, “informe” os ouvintes sobre as notícias do plantão policial da cidade.

A leitura integral de uma série de Boletins de Ocorrência, além de soar chata ao ouvinte, é, no mínimo, desleal ao compromisso ético que norteia as regras do bom jornalismo. Em circunstâncias mais críticas, como um eventual tiroteio entre polícia e bandido, a única versão que tem a chance de se tornar pública, isto é, virar notícia, é a da própria polícia. Ao final de sua “reportagem”, antes da assinatura do soldado, cabo ou capitão fulano de tal, o ouvinte ainda tem de se contentar e dizer “Amém” após a leitura de algum versículo da Bíblia.

Salvo raras exceções, a opção das emissoras de rádio em substituir o repórter policial por um policial “repórter” tem como explicação o fato de ainda se sentirem amarradas pelo dilema de “serem veículos de uma cidade pequena” — embora em alguns casos elas sejam franqueadas à grandes redes nacionais. E assim se diminuem. E pior, diminuem a qualidade do jornalismo e, por tabela, o respeito para com seus ouvintes.

Produção local... mas cadê os arquivos?

Por Felipe Shikama

O curso de Jornalismo da Universidade de Sorocaba (Uniso) iniciou em 2007 uma proposta pioneira no país. Para a obtenção do diploma, além da obrigatoriedade do projeto experimental - isto é, um produto jornalístico como video-documentário, revista, jornal, programa de rádio etc - o curso passa a exigir uma pesquisa científica capaz de relacionar o tema escolhido pelo aluno à produção de conhecimento científico.

Maria Immacolata Vassalo Lopes, coordenadora da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo (ECA-USP), é uma das defensoras da proposta. "A 'tese' de graduação contrubui para naturalizar o conhecimento científico na graduação", disse ela, durante abertura do 2º Endecom.

Conhecimento regional e descaso "histórico"
Outra vantagem, a partir da proposta, é a produção de conhecimento enfocando, prioritariamente, o jornalismo regional. Que vai permitir finalmente que o curso de Jornalismo cumpra sua premissa institucional - sendo uma universidade comunitária, cabe a ela devolver o conhecimento científico à própria comunidade.

No entanto, a lamentável deficiência de alguns jornais sorocabanos tem prejudicado a realização de estudos empíricos. É que os veículos, salvo o Cruzeiro do Sul, não conservam suas publicações em arquivos públicos para consultas.

A alternativa para os estudantes é buscar exaustivamente o conteúdo desejado em bibliotecas, ou outras instituições que disponibilizam este serviço negligenciado pelos próprios jornais. Uma solução é o Gabinete de Leitura, que apesar de cobrar uma taxa para consulta, tem salvado a lavoura desses estudantes.

Indispensável perguntar: como nossos jornais, protagonistas da história de nossa cidade não conservam a sua própria história?

Veja e o antijornalismo

Por João José de Oliveira Negrão

O jornalista Luís Nassif criou um enorme burburinho nos meios jornalísticos brasileiros. Em seu blog, publicou – até agora – 21 reportagens sobre exemplos de antijornalismo da Veja, a revista semanal de informação, publicada pela editora Abril, que tem a maior tiragem no Brasil e é uma das que circula com o maior número de exemplares no mundo.

Em diferentes situações, Nassif mostra como a revista foi usada como arma em disputas empresariais, como na matéria “A guerra das cervejas”, no apoio aos interesses do discutido banqueiro Daniel Dantas ou em “O caso COC”, quando as críticas acerbas feitas ao caráter “subversivo” das apostilas produzidas por aquele sistema de ensino não contaram aos leitores que, pela aquisição relativamente recente de duas editoras, a Abril era concorrente direta da COC no rendoso segmento de apostilas para os cursos fundamental e médio.

Tanto a editora Abril quanto jornalistas citados abriram processos contra Nassif. De outro lado, muitos daqueles que concordam que a Veja pratica antijornalismo provocaram um fenômeno chamado google bomb: a reprodução dos textos e/ou a geração de links para o blog do jornalista.
Com isso, criou-se uma situação nova: um grande conglomerado editorial, que publica a revista brasileira com maior tiragem, entre dezenas de outros títulos, com braços também no mercado de livros, contra um jornalista que, apesar de famoso, conta com um blog e uma agência de notícias e artigos, a Dinheiro Vivo. É Davi contra Golias, mas a arena é nova e nada garante que, desta vez – como costuma acontecer – o mais forte vai levar a melhor. Até porque Nassif é um jornalista respeitado. Já a Veja e seus epígonos...

Jornalismo e visão de mundo

Por João José Negrão
A maior parte do que conhecemos sobre o mundo vem da mídia; apenas uma parcela bem pequena é dada diretamente pelos nossos sentidos. E também muito de nossa visão sobre a sociedade, sobre o homem e de como agir. O jornalismo não transmite apenas “fatos”, mas também julgamentos, valores e interpretações.

A realidade que nos cerca não existe simplesmente como um dado, mas é também construída pela nossa maneira de vê-la. Mesmo a realidade física não é apenas apreendida pela nossa visão, tato, audição, mas reconstruída em nossas representações, quando dela falamos ou escrevemos.
As representações que temos do mundo social são ativas: nós agimos no mundo de acordo com o que sabemos dele. A conservação ou a transformação da sociedade dependem, em grande parte, dessas representações.

O jornalismo tem três etapas marcantes: a coleta de informações; a seleção e hierarquização das notícias e a distribuição dessas informações para o grande público. É na seleção que está o ponto central: o que não for selecionado e, portanto, não virar notícia, não vai ser do conhecimento da maior parte das pessoas.

A mídia ainda estabelece a agenda pública de discussões (agenda-setting) e exerce a função de “enquadramento” (framing), pela qual as questões são colocadas dentro de determinados esquemas interpretativos.

Por isso, é essencial para a democracia que uma pluralidade de pontos de vista esteja presente na mídia. A tendência do mercado, no entanto, tem sido a de concentração da propriedade por parte dos grandes conglomerados midiáticos. A sociedade e os estados democráticos, mais cedo ou mais tarde, vão ter de enfrentar este ponto de tensionamento.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O jornalista e suas fontes

Por João José Negrão

O jornalismo contemporâneo sustenta-se na relação do jornalista com suas fontes: uma confiança “desconfiada” deve estabelecer-se entre o repórter e a pessoa ou documento escrito de onde ele capta a informação. O Novo Manual de Redação da Folha de S. Paulo chega a classificar quatro tipos de fontes.

A fonte tipo zero é escrita e com tradição de exatidão; a tipo um “é a mais confiável nos casos em que a fonte é uma pessoa”; a tipo dois “tem todos os atributos da fonte um, menos o histórico de confiabilidade”; e a tipo três é “a de menor confiabilidade. É bem informada, mas tem interesses (políticos, econômicos etc.) que tornam suas informações nitidamente menos confiáveis”.
Para a Folha, informações de fonte deste último tipo devem funcionar como ponto de partida para o trabalho ou, no máximo, ser publicadas em colunas de bastidores, ressaltando que se trata de informação não confirmada.

Mas independente da adoção desta classificação, uma das regras fundamentais, do ponto de vista ético, é a proteção das fontes: o jornalista nunca deve expô-las e tem o dever de protegê-las mesmo em caso de processo legal. Ao não agir assim, o repórter quebra um contrato tácito que existe entre ele e a fonte. Este acordo é o que tem permitido, desde o início do século XX – quando as fontes passam a ganhar importância central no jornalismo ocidental –, que inúmeras situações que, do ponto de vista de governos, instituições ou empresas privadas, deveriam ser mantidas em segredo, tornem-se públicas e desveladas aos cidadãos. Quebrá-lo pode significar, no mínimo, obstruir uma fonte significativa; no ponto mais extremo, retirar do jornalismo a sua capacidade de contribuir com a transparência dos negócios públicos e privados.

Caso Isabella: aspectos jornalísticos que vão além da brutalidade

Por Felipe Shikama

Passadas algumas semanas do aparente final da novela midiática em torno do “Caso Isabella”, é possível avançarmos numa reflexão que, ao contrário do tom especulatório e sensacionalista dado por alguns veículos, possa contribuir para o avanço do debate dos efeitos sociais provocados pelo jornalismo e sua postura ética.

Neste artigo, me limitarei a traçar alguns indícios de resposta capaz de responder a seguinte questão: por que motivo um acontecimento como o Caso Isabela atrai tanto a atenção da mídia e/ou da sociedade?

Abstenho-me em esboçar uma explicação “cientificamente sociológica”, mas sob a perspectiva do próprio jornalismo o fato de estar em jogo, não somente a vida de uma garota de cinco anos, e sim a filha pequena e indefesa de um homem de classe média apontado, desde o início, como principal suspeito já responde em grande parte a pergunta sugerida.

Mas além deste fato, outros elementos garantem a sustentação do acontecimento, isto é, a construção de novas notícias a partir do acontecimento inicial. Um dos elementos que remete à exaustiva dimensão da novela, que além do próprio roteiro cercado de mistério (importante valor-notícia), tem a ver com os personagens da tragédia . Promotores, advogados, peritos, ONGs e até artistas e padres pop. Neste momento também aparecem especialistas de todo o tipo. Quaisquer declarações são tomadas como verdadeiras e, logo são notícias. As não declarações, omissões e desmentidos, também.

Por fim, não menos importante, um último aspecto jornalístico que contribui, a meu ver de forma determinante, para a magnitude de um caso tão particular como o da menina Isabella está relacionado com a forma como a grande mídia brasileira está estruturada. Isso porque o caso aconteceu na capital paulista, local onde se concentra grande número de jornalistas por metro quadrado. Basta se lembrar da quantidade de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas acampados, em vigília, na porta da delegacia...

Se caso semelhante ocorresse noutra cidade – nem tão distante de São Paulo como, por exemplo, Votorantim, onde no final em novembro de 2007 foi palco de uma chacina que vitimou cinco jovens, — talvez o valor-notícia da brutalidade de uma garota arremessada pela janela de um prédio por quem quer que seja não teria tido a mesma dimensão.