quinta-feira, 19 de junho de 2008

Espaço público local: conflitos que não aparecem nos jornais

Por Felipe Shikama

Conforme Jean-François Tétu, o espaço público é um espaço simbólico feito de saberes e representações. A imprensa local, que se (auto) legitimou como instrumento fiscalizador delegado pela sociedade, deve exercer o papel de articulador das grandes discusões nesse espaço público local. E o "local", no entanto, não pode mais ser definido simplesmente por um único território, mas pela noção de lugar de vida.

Nas palavras de Tétu, o espaço público não remete apenas à ancoragem territorial do hábitat, mas sobretudo o lugar, onde se dão conflitos e o efeito das decisões em matéria de desigualdade de todos os tipo, de emprego (ou de desemprego), de transporte, de acesso a cultura (escolaridade), de saúde, etc. Em outras palavras, o local aparece como o lugar de verdade do "político".

Embora o discurso neoliberal defenda a convergência das atividades nacionais e locais, sob a premissa de que nenhum dos grandes problemas da atualidade podem mais ser tratados em nível nacional, mas sob outras alternativas —­sejam elas supranacionais, por exemplo, blocos econômicos; ou no que nos interessa aqui, em um nível local— o espaço público representa, independente de sua dimensão, uma arena conflituosa composta por diferentes classes, frações de classe e suas respectivas ideologias.

A questão que sugiro neste artigo é saber em que grau e como esses conflitos são representados pela imprensa local. Em semelhante estudo, tendo como objeto jornais locais franceses, Tétu alerta que no âmbito local os jornais parecem ignorar a noção de conflito e operar pela construção de um consenso, no que ele chama de "institucionalização das relações sociais". Para ele, o que mais choca quando de uma leitura atenta das páginas locais é a ausência quase total de conflitos que, entretanto, constituem uma dimensão central da vida desses grupos, como se tudo o que é o objeto de uma disputa real de poder se encontrasse neles afastado em prol do espetáculo da concordância. Mas, de modo geral, a que podemos atribuir esse consenso nas páginas dos jornais?

Durante décadas as reflexões teóricas da comunicação social se limitaram a uma perspectiva funcionalista alicerçada em estudos de natureza empirista, tendo como base filosófica o positivismo comteano — enquadrando as ciências sociais no paradigma das ciências naturais—, levado ao cabo por Durkheim e claramente revelado por Adelmo Genro Filho: "o que está em foco, na essência do próprio método, é a reprodução e a estabilidade do sistema social". Conforme Genro, o desenvolvimento dos meios de comunicação e do próprio jornalismo são analisados como processos independentes em relação ao desenvolvimento global das forças produtivas e da luta de classes, ou seja, apartados do movimeto histórico em seu conjunto. Ao contrário, os meios de comunicação são tomados como 'função orgânica' da sociedade capitalista contemporânea, entendida esta como paradigma do processo e da normalidade.

Para Genro, a "ausência de conflitos" apontada por Tétu se deve, entre outros motivos, ao "espírito pragmático” da grande maioria dos jornalistas, em parte devido a defasagem do acúmulo teórico em relação ao desenvolvimento das “técnicas jornalísticas” e, em parte, devido ao caráter insolente e prosáico que emana naturalmente da atividade.

Por outro lado, outra importante linha teórica parece contrapor-se à perspectiva funcionalista. Chamada de nova fase dos estudos jornalísticos, conforme um dos pioneiros da pesquisa do Jornalismo em língua portuguesa, Nelson Traquina, a década de 70 é marcada pelo interesse crescente da investigação da ideologia. Essa perspectiva crítica, e fortemente influenciada por autores marxistas, passa a enxergar a mídia como organismo estruturado numa visão burguesa, reprodutora da ideologia dominante. Mas, seja "integrada", de perspectiva funcionalista, ou "apocalítipica" e crítica, a limitação do papel do jornalismo como agente de interação social e, a partir dessa coesão, fabricação do consenso merece novas reflexões, afinal, devemos levar em conta o avanço da pluralidade cada vez mais intensa no jornalismo contemporâneo.

Longe de ser uma terceira via entre o "integrado" e o "apocalíptico", na velha expressão de Umberto Eco, visto que ambas perspectivas concordam que a falta da pluralidade no processo jornalístico (restringido a fontes predominantes oficiais, tecnicistas e "neutras") tende a operar pela construção do consenso hegemônico; o que deve indicar outros indícios de resposta à "ausência de conflitos" — principalmente no âmbito local — é o o tratamento dado aos interlocutores subalternizados, agora, incluídos nesse processo.

Afinal, esse “pluralismo intenso”, segundo João Carlos Correia, é resultante da emergência e da revalorização das entidades minoritárias, fazendo com que os jornais sirvam de “arena” de tensões e fragmentações da luta de classes. E o jornalismo é uma das principais instituições capazes de contribuir para construção da hegemonia, por meio da qual uma classe dominante consegue instituir uma base de consentimento para certa ordem social, na medida em que ele estabelece parâmetros cognitivos por meio dos quais as pessoas lêem e interpretam o mundo.

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