terça-feira, 24 de junho de 2008

O Jornalismo e as categorias gramscianas

Por Felipe Shikama

Se os meios noticiosos são capazes de dar sentido a realidade, na medida em que definem situações e catalogam acontecimentos tidos como “normais” ou “patológicos”, é na ideologia, como mecanismo simbólico, conforme Jorge Pedro Sousa, que o sistema de idéias cimenta a coesão e a integração social.
A construção desse alto grau de consenso inclinado a uma visão de mundo dominante, em Gramsci, é definida na categoria “hegemonia”. Isto é, a capacidade de uma classe manter sua dominação e, não apenas por meio da força, de exercer sua liderança moral e intelectual sobre as outras.
A hegemonia seria vista como um processo conflituoso e dinâmico que teria de continuamente incorporar e absorver valores diferentes e, por vezes, opostos, bem como normas freqüentemente dispares. Para Willians (1977), a hegemonia não subsiste na passividade; pelo contrário, necessitaria de se renovar, recriar defender e modificar continuamente, o que se encontraria expresso no limitado debate público que ocorre dentro dos órgãos de comunicação social.
E a noção de movimento permanente dessa primeira categoria gramsciana é fundamental para avançarmos na arena real onde as disputas pela hegemonia de corações e mentes acontecem. Essa arena conflituosa, conforme Gramsci, é a sociedade civil. Porém, antes é necessário fazermos uma breve revisão, sem a pretensão de esgotar o assunto, no conceito de “Estado” ampliado pelo revolucionário italiano.

Ao contrário das primeiras definições marxistas, na qual o Estado, em seu sentido restrito, é uma esfera burocrática burguesa não só desnecessária como maléfica a um modelo mais igualitário; Gramsci amplia este sentido entendendo que o Estado é, na verdade, um equilíbrio entre “sociedade política” e a “sociedade civil”. A sociedade política é, então, o Estado em sentido restrito ou “Estado-coerção”, pois se constitui, entre outros elementos, por seus estratos coercivos como polícia, poder judiciário etc. Já a “sociedade civil” é o espaço vulgarmente chamado de privado, onde sem coerção, a hegemonia se articula por meio da ideologia.

Tendo o Estado eu seu sentido ampliado, Gramsci faz uma distinção entre Estado do “Oriente” e do “Ocidente”. Os Estados de formação “oriental” são caracterizados pela sociedade política sólida e altamente coerciva e da sociedade civil desorganizada. “No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa”. Já os Estados de formação “ocidental” são marcados pela capacidade organizativa da sociedade civil e a legitimidade de seus estratos privados como jornais, sindicatos, escolas, etc.

Vale lembrar que esta distinção entre ‘oriental e ocidental’ não é simplesmente geográfica, como explica Carlos Nelson Coutinho, a 'ocidentalidade' de uma formação social é o resultado de um processo histórico. Gramsci não se limita a registrar a presença sincrônica de formações do tipo 'oriental' ou 'ocidental', mas indica também os processos histórico-sociais, diacrônicos, que fazem com que uma formação social se torne 'ocidental', ou, mais concretamente que passe a ter um Estado 'ampliado', no qual exista uma 'justa relação' entre Estado e sociedade civil.
Em uma formação “oriental”, por exemplo, a revolução bolchevique usou como estratégia para o socialismo uma “guerra de movimento”; isto é, um ataque frontal ao Estado-coerção, mesmo que utilizando da falsa suposição de um iminente colapso do capitalismo. Estratégia que não surtiria efeito nos Estados “ocidentais”, pois, nesse caso, a “sociedade política” é, em determinados momentos, subordinada à “sociedade civil” que aqui já é mais articulada e mais sólida.
É exatamente na arena da sociedade civil aonde os estratos organizativos privados vão, na luta pela uniformidade de corações e mentes, se articular na disputa pela conquista de uma direção política com maior grau de consenso da sociedade.
Esses estratos, em especial os jornais, são definidos por Gramsci como “Aparelhos Privados da Hegemonia”. Isto é, [...]uma teia de instituições, relações sociais e idéias a fim de representar uma base de consentimento para certa ordem social, local onde "a hegemonia" – direção intelectual e moral – vai ser exercida, então, pelo grupo social dominante sobre os grupos aliados do bloco histórico (subalternos), mas na perspectiva de representar toda a sociedade.”

Nesse sentido, podemos afirmar que o Brasil, hoje, é um Estado ocidental dada a capacidade de organização da sociedade civil e a legitimidade de seus estratos privados, conforme Coutinho, em dados empiricamente constatáveis, como adesão aos sindicatos, crescimento das comunidades de base, incremento dos partidos políticos de esquerda. Portanto, falar hoje de fortalecimento da sociedade civil brasileira não é apenas propor um programa político, mas ao mesmo tempo, registrar uma realidade de fato. Pelas vias transversas da revolução passiva, o Brasil tornou-se uma sociedade “ocidental” madura para transformações sociais.
Este mesmo grau de “ocidentalidade” pode ser atribuído aos municípios, pois mesmo numa cidade brasileira onde a “sociedade política” tencione a usar todos os recursos coercivos para a conquista da hegemonia, também haveria resistência ou, pelo menos, possibilidade de resistência da sociedade civil à classe dirigente em um movimento contra-hegemônico.
Conforme Coutinho, a ideologia, enquanto concepção de mundo articulada como uma ética correspondente, “é algo que transcende o conhecimento e se liga diretamente com a ação voltada para influir no comportamento dos homens, o que em termos gramscianos significa dizer que a ideologia é o medium da hegemonia”, pois a “compreensão crítica de si mesmo ocorre através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois da política para chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real (...). Por isso, deve-se sublinhar como o desenvolvimento político do conceito hegemonia representa um grande progresso, não só político-prático, mas também filosófico.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Espaço público local: conflitos que não aparecem nos jornais

Por Felipe Shikama

Conforme Jean-François Tétu, o espaço público é um espaço simbólico feito de saberes e representações. A imprensa local, que se (auto) legitimou como instrumento fiscalizador delegado pela sociedade, deve exercer o papel de articulador das grandes discusões nesse espaço público local. E o "local", no entanto, não pode mais ser definido simplesmente por um único território, mas pela noção de lugar de vida.

Nas palavras de Tétu, o espaço público não remete apenas à ancoragem territorial do hábitat, mas sobretudo o lugar, onde se dão conflitos e o efeito das decisões em matéria de desigualdade de todos os tipo, de emprego (ou de desemprego), de transporte, de acesso a cultura (escolaridade), de saúde, etc. Em outras palavras, o local aparece como o lugar de verdade do "político".

Embora o discurso neoliberal defenda a convergência das atividades nacionais e locais, sob a premissa de que nenhum dos grandes problemas da atualidade podem mais ser tratados em nível nacional, mas sob outras alternativas —­sejam elas supranacionais, por exemplo, blocos econômicos; ou no que nos interessa aqui, em um nível local— o espaço público representa, independente de sua dimensão, uma arena conflituosa composta por diferentes classes, frações de classe e suas respectivas ideologias.

A questão que sugiro neste artigo é saber em que grau e como esses conflitos são representados pela imprensa local. Em semelhante estudo, tendo como objeto jornais locais franceses, Tétu alerta que no âmbito local os jornais parecem ignorar a noção de conflito e operar pela construção de um consenso, no que ele chama de "institucionalização das relações sociais". Para ele, o que mais choca quando de uma leitura atenta das páginas locais é a ausência quase total de conflitos que, entretanto, constituem uma dimensão central da vida desses grupos, como se tudo o que é o objeto de uma disputa real de poder se encontrasse neles afastado em prol do espetáculo da concordância. Mas, de modo geral, a que podemos atribuir esse consenso nas páginas dos jornais?

Durante décadas as reflexões teóricas da comunicação social se limitaram a uma perspectiva funcionalista alicerçada em estudos de natureza empirista, tendo como base filosófica o positivismo comteano — enquadrando as ciências sociais no paradigma das ciências naturais—, levado ao cabo por Durkheim e claramente revelado por Adelmo Genro Filho: "o que está em foco, na essência do próprio método, é a reprodução e a estabilidade do sistema social". Conforme Genro, o desenvolvimento dos meios de comunicação e do próprio jornalismo são analisados como processos independentes em relação ao desenvolvimento global das forças produtivas e da luta de classes, ou seja, apartados do movimeto histórico em seu conjunto. Ao contrário, os meios de comunicação são tomados como 'função orgânica' da sociedade capitalista contemporânea, entendida esta como paradigma do processo e da normalidade.

Para Genro, a "ausência de conflitos" apontada por Tétu se deve, entre outros motivos, ao "espírito pragmático” da grande maioria dos jornalistas, em parte devido a defasagem do acúmulo teórico em relação ao desenvolvimento das “técnicas jornalísticas” e, em parte, devido ao caráter insolente e prosáico que emana naturalmente da atividade.

Por outro lado, outra importante linha teórica parece contrapor-se à perspectiva funcionalista. Chamada de nova fase dos estudos jornalísticos, conforme um dos pioneiros da pesquisa do Jornalismo em língua portuguesa, Nelson Traquina, a década de 70 é marcada pelo interesse crescente da investigação da ideologia. Essa perspectiva crítica, e fortemente influenciada por autores marxistas, passa a enxergar a mídia como organismo estruturado numa visão burguesa, reprodutora da ideologia dominante. Mas, seja "integrada", de perspectiva funcionalista, ou "apocalítipica" e crítica, a limitação do papel do jornalismo como agente de interação social e, a partir dessa coesão, fabricação do consenso merece novas reflexões, afinal, devemos levar em conta o avanço da pluralidade cada vez mais intensa no jornalismo contemporâneo.

Longe de ser uma terceira via entre o "integrado" e o "apocalíptico", na velha expressão de Umberto Eco, visto que ambas perspectivas concordam que a falta da pluralidade no processo jornalístico (restringido a fontes predominantes oficiais, tecnicistas e "neutras") tende a operar pela construção do consenso hegemônico; o que deve indicar outros indícios de resposta à "ausência de conflitos" — principalmente no âmbito local — é o o tratamento dado aos interlocutores subalternizados, agora, incluídos nesse processo.

Afinal, esse “pluralismo intenso”, segundo João Carlos Correia, é resultante da emergência e da revalorização das entidades minoritárias, fazendo com que os jornais sirvam de “arena” de tensões e fragmentações da luta de classes. E o jornalismo é uma das principais instituições capazes de contribuir para construção da hegemonia, por meio da qual uma classe dominante consegue instituir uma base de consentimento para certa ordem social, na medida em que ele estabelece parâmetros cognitivos por meio dos quais as pessoas lêem e interpretam o mundo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Jornais, jornalistas e números

Por João José de Oliveira Negrão

Sempre me bati contra a frase feita de que o jornalista – ou qualquer outro profissional ou estudioso das ciências humanas – não se dá bem com números, que esta preocupação é um “desvio burocrático”. Não é. A precisão da informação e o cuidado com as cifras deve ser uma obsessão do jornalista. Se devemos checar e rechecar nomes, datas e períodos, mais ainda temos de nos preocupar os números.

Essa preocupação faltou na matéria do Cruzeiro do Sul, de 10/06/08, sobre os investimentos do governo federal em Sorocaba. O jornal simplesmente comprou sem ver – quase um ctrlc / ctrlv -- matéria publicada pela Folha de S. Paulo no dia anterior, eivada de erros. Ambos afirmam, por exemplo, que a cidade contou com apenas R$ 1.364.343,00 de verbas federais nos cinco anos do governo Lula.

Ora, bastava uma simples consulta aos arquivos do Cruzeiro do Sul para se saber que o “estudo” da Folha, reproduzido pelo centenário jornal local, estava errado. É inaceitável. É verdade que o jornalismo trabalha premido pelo tempo, que os prazos e processos industriais têm de ser cumpridos. Mas o bom senso e, muitas vezes, até mesmo o óbvio não podem ser deixados de lado.

Será que ninguém – repórter, editor, editor-chefe – percebeu que aquela quantia pretensamente investida em Sorocaba estava errada? Será que ninguém lembrou que só o campus da UFSCar na cidade custou mais do que aquilo? E o que já foi investido na despoluição do rio Sorocaba, para tratamento de esgotos? E para regularização fundiária? Tudo isso foi matéria nos jornais, rádios e tevês da cidade.

O concorrente do Cruzeiro do Sul, o Bom Dia, de 14/06/08, também errou. Ele pegou oito cidades, quatro administradas pelo PT (Araraquara, Botucatu, Porto Feliz e Santo André) e quatro pelo PSDB (Jundiaí, São José dos Campos, Sorocaba e Ribeirão Preto). Na manchete, afirma que Sorocaba recebe 20% a menos que a média das cidades “petistas”. Está errado. Pelos números apresentados pelo jornal, as quatro cidades “petistas” receberam R$ 775.428.553,09 para uma população de 1.030.560 pessoas. Isso dá um total per capita de R$ 752,43. As cidades “tucanas” receberam R$ 1.684.508.362,51 para 2.044.505 habitantes. Per capita, cada morador recebeu R$ 823,92. A manchete devia ser outra. Talvez “Lula investe mais em cidades tucanas que petistas”, que dá o mesmo número de caracteres do título original.

Como no jornalismo o erro profissional também é um erro ético, esses vacilos permitem mil elucubrações, até mesmo a suposição de que a intenção não era mesmo informar, mas confundir.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

O jornalismo na medida do possível

Por Sylvia Moretzsohn

O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.

O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.

Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.

"Guerra do Rio"

Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".

Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.

Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.

A falaciosa metáfora da guerra

Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.

"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.

Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.

Os riscos da infiltração

Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.

A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:
"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."

O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?

Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.

Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".
Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".

O apelo ao risco

Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".

Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".

A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.

Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.

A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.

Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.


(Publicado originalmente no Observatório da Imprensa)
Sylvia Moretzsohn
Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

quinta-feira, 5 de junho de 2008

As drogas no centro do debate

Por Felipe Shikama

Num determinado momento, bilhões de acontecimentos simultâneos ocorrem em todo o mundo e todas estas ocorrências são potencialmente notícias. Só o são, porém, no momento em que alguém que fornece um relato dessas ocorrências. A obviedade descrita nessas três linhas sintetiza a natureza do jornalismo e a razão de sua existência.

Entretanto, alguns aspectos desempenhados pela atividade intelectual do jornalismo vão além da capacidade, condicionada às inúmeras variáveis, de transformar acontecimentos distintos em notícias, isto é, dar existência pública a determinado fato.

Um desses aspectos está ligado à capacidade que o jornalismo tem de pautar assuntos, sob pressupostos prioritários, para o debate público. A hipótese da Agenda Setting assume que a mídia define, para a maior parte da população, os acontecimentos significativos.

Tomemos como exemplo a campanha “Seja Usuário da Vida” articulada recentemente pelo jornal Cruzeiro do Sul. A iniciativa, com série de reportagens, palestras e debates teve como objetivo colocar o problema das drogas no centro da discussão, tanto para a sociedade quanto para o poder público.

Conforme a hipótese da Agenda Setting, se a imprensa tem uma capacidade espantosa para dizer as pessoas sobre o que pensar, ela não consegue, no entanto, dizer aos seus próprios leitores como pensar. Neste sentido, notícias de apreensão de drogas na cidade, que seriam corriqueiras no espaço do plantão policial, muitas vezes tiveram um enquadramento forçado em detrimento da campanha. No dia em que o Cruzeiro noticiou a chacina de Votorantim, no final do ano passado, um selo da campanha dividiu o espaço da matéria.

Além de cometer um equívoco de enquadramento, o jornal agiu de forma irresponsável, pois, de alguma forma, sugeriu ao leitor que os cinco jovens assassinados em um terreno abandonado seriam usuários de drogas. Fato que foi comprovado posteriormente.

Mas além do agendamento, outro aspecto fundamental desempenhado pela mídia tem a ver com o “enquadramento”. Afinal, o jornalismo oferece interpretações poderosas acerca da forma de compreender determinados acontecimentos. E qualquer interpretação desempenhada pelo jornalismo deve, obrigatoriamente, ser pautada pela maior pluralidade possível.

Outro equivoco cometido pelo Cruzeiro, ao tomar as drogas como tema prioritário, foi restringir o debate àqueles que são contra as drogas. Diz o povo que debate onde só tem corintiano não é debate... Tanto nas matérias publicadas quanto nos encontros promovidos pelo jornal, não havia um representante convidado que se manifestasse favorável a descriminalização das drogas.

Não custa repetir: o jornalismo é uma atividade intelectual. E ainda cabe lembrar: a hora em que o jornal vai “rodar” nas oficinas gráficas, os jornalistas podem até ter terminado seu trabalho, mas os efeitos sociais provocados por eles estão apenas começando.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

A imprensa toma partido

Por João José de Oliveira Negrão

As eleições para prefeitos e vereadores estão chegando. Os partidos se movimentam, as alianças começam a ganhar forma, nomes são lançados ao teste público para medirem sua viabilidade. Mas há uma força “partidária”, não legalmente organizada, que merece mais atenção por parte dos eleitores: a imprensa. Diferentes estudos, realizados por universidades paulistas, cariocas, mineiras, gaúchas e de fora do Brasil, têm demonstrado o peso que o jornalismo pode ter na decisão do voto.

Um dos mais recentes foi realizado pelo Doxa, Laboratório de Pesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública, ligado ao Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). Organizado por Marcus Figueiredo e Alessandra Aldé, o estudo “Imprensa e Eleições Presidenciais: natureza e conseqüências da cobertura das eleições de 2002 e 2006” afirma que “os grandes jornais de circulação nacional, no Brasil [no caso a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo], adotam um híbrido entre dois modelos de pluralismo: formalmente, no discurso ético de autoqualificação diante dos leitores, procuram associar-se aos conceitos e rituais de objetividade do jornalismo americano, como é possível constatar nos slogans, diretrizes oficiais, manuais de redação, cursos de jornalismo. No entanto, na produção do impresso diário, o que vimos são diferenças no tratamento conferido aos candidatos, de amplificação de certos temas negativamente associados a Lula, contraposto à benevolência no tratamento de temas espinhosos relacionados a seus adversários”.

A cobertura da grande imprensa paulista dos casos do acidente na estação Pinheiros do metrô e da Alstom tem mostrado estes dois pesos e duas medidas: o governador Serra tem sido poupado. Ao contrário, qualquer problema no governo federal é logo e insistentemente associado a Lula.

Vamos tentar acompanhar neste blog, na medida das nossas parcas forças, o comportamento da imprensa local nas cidades da nossa região, para ver se tal postura se repete nas eleições para prefeitos e vereadores. Tanto quantitativamente – o espaço e o tempo dedicados aos diferentes candidatos – quanto qualitativamente – as coberturas positivas e negativas das suas atividades – deverão aparecer. Colaboradores e colaboradoras para esta empreitada serão bem vindos.