quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A imagem de Joshua Bernard agonizante divide os americanos


É uma boa discussão sobre a Ética no Jornalismo. A publicação agride a família? Mas o público não tem o direito cidadão de saber o que ocorre numa guerra em que seus jovens estão lutando, sem saber bem por quê? As críticas do Secretário de Defesa defendem a privacidade da família ou os interesses estratégicos dos EUA no Afeganistão? A guerra do Vietnã não teria se prolongado - custando mais vidas - caso as fotos e imagens não tivessem sido divulgadas? Mas também não é verdade que os familiares e amigos do soldado morto estão sofrendo duplamente, com a morte e a exposição? Enfim, há uma série de vetores em ação, que não permitem respostas simples. Esta complexidade fomenta o debate da ética na nossa profissão. Ela está no dia-a-dia e não é mera abstração intelectual, mas uma pratica vivida por todos os jornalistas. (João José de Oliveira Negrão)




Cláudio Versiani*

Quais são os limites éticos para a publicação de uma foto de um soldado ferido e que morrerá logo depois? Essa é a pergunta que alguns norte-americanos estão se fazendo depois que a agência Associated Press distribuiu a imagem do marine Joshua Bernard.

O blog Lens, do NY Times, contou a história muito bem...


A discussão ganhou a rede, dividiu os americanos e chegou ao governo. O secretário de Defesa de Obama, Robert Gates, ficou sabendo que a AP iria distribuir a foto e resolveu intervir. Gates escreveu uma carta para Tom Curley, presidente da agência, tentando fazer com que a Associated Press não divulgasse a imagem de Joshua Bernard em seus últimos momentos de vida.

“Por respeito aos desejos da família, peço que reconsidere sua decisão. Sua falta de compaixão e de senso comum em colocar a imagem de um filho (soldado) ferido e mutilado na primeira página de vários jornais americanos é terrível.” E acrescentou: “não posso imaginar a dor e o sofrimento que a morte do cabo Bernard causou à sua família”. Gates ainda disse que a imagem era atroz.

A agência manteve sua decisão e justificou o motivo. O diretor de fotografia, Santiago Lyon, rebateu: "O Afeganistão não é exceção. Acreditamos que é nosso dever jornalístico mostrar a realidade da guerra neste país, por mais desagradável e brutal que seja essa realidade".

Os EUA são divididos em branco e negro, sem trocadilho, e pouco espaço há para o cinza ou qualquer outra cor ou matiz. Bush fez questão de dividir o país em “ou você está comigo ou você está contra a América”. A estratégia colou no primeiro mandato e começou a se desfazer no começo do segundo. Bush saiu da Casa Branca com um dos maiores índices de desaprovação entre todos os presidentes americanos.

Obama tentou fazer exatamente o contrário. A ideia era juntar novamente um país rachado. Mas a direita até hoje não engoliu a eleição de um negro quase africano de nome quase islâmico e que bateu um herói americano da guerra Vietnã na disputa pelo cargo de comandante em chefe do império norte-americano.

Obama foi fazendo concessões aqui e ali, tentando compor.

O secretário Robert Gates, que chefiou a CIA no governo Bush, é uma delas. Parece que não está dando certo. A direita disparou seus contra-ataques.

Voltemos à foto e à sua autora. Julie Jacobson mantém um diário com suas anotações sobre o trabalho no Afeganistão.

No dia 15 de agosto de 2009 Julie contou como fez a foto de Joshua Bernard ferido de morte por uma granada lançada pelos talibãs. E no dia 19 de agosto ela escreveu...

"Eu acredito que como jornalista nossa responsabilidade social é capturar e publicar essas imagens. Nós não sofremos oposição para fotografar ou publicar os mortos das forças do outro lado ou mesmo as mortes de civis. Será que essas pessoas são menos humanas do que os americanos ou outros soldados da Otan?"

O diário de Julie aqui.

Ou então veja e escute Julie contar como foi o episódio.

O curioso ou o trágico é que quando se discutia a publicação ou não da foto de Bernard, a notícia da semana foi o bombardeio da Otan que matou 90 afegãos - não se sabe muito bem quantos talibãs – mas, ao certo, metade ou mais de 45 pessoas eram civis, e claro, mulheres e crianças, as vítimas preferenciais dos efeitos colaterais de toda guerra. O bombardeio foi ordenado por oficiais alemães e uma investigação foi instaurada para apurar os fatos. Não vai dar em nada, muito provavelmente.

Os norte-americamos gostam de se meter aonde não são chamados e produzir uma guerra aqui e outra ali. A invasão do Iraque foi motivada por duas grandes mentiras de Bush e sua turma. A armas de destruição em massa nunca foram encontradas no país de Saddam Hussein e a ligação do ditador com o atentado de 11 de setembro de 2001 era pura balela. Mas, na época, convinha acreditar e gastar o estoque de mísseis “Tomahawk” que estavam por perder a data de validade.

Obama herdou as duas guerras e não sabe o que fazer com nenhuma delas. O Iraque anda mais ou menos. Mas o Afeganistão está cada dia pior. Só no mês de agosto morreram mais de 50 soldados americanos. Ninguém gosta de ver ninguém morto. E muito menos os norte-americanos, para quem os soldados são heróis e estão defendendo o “mundo livre” em todos os lugares do planeta. A imagem de herói não combina com a morte comum num terreno qualquer no longínquo Afeganistão.

O pai de Joshua, John Bernard, um ex-marine, disse ao repórter da AP que lhe mostrou a foto do soldado agonizante: “Nem eu, nem minha esposa, nem minha filha necessitamos ver isso. Ninguém precisa ver isso. Se você estiver procurando por minha aprovação, você não a tem. Volte para sua empresa (AP) e diga a eles que ninguém precisa ver isso. Isso (a imagem) desonra Joshua, desonra as forças armadas, desonra Deus, desonra este país e desonra a sua agência.”

Um pouco mais sobre imagens proibidas aqui (“La imagen prohibida de Irak”).

Na opinião do veterano do Vietnã Jim Looram, fotos de soldados mortos não deveriam nunca ser publicadas durante a guerra. Para ele, civis não entendem o que é estar em um campo de batalha. Sua filha, Meaghan, é a editora de fotos do NYTimes que lidou com as imagens que acompanharam o artigo de Kamber e Arango. Ela, no entanto, discorda de seu pai: “Olhar as fotos de um soldado seriamente ferido ou morto é uma experiência afetiva e emocional. Porém, eu acho que é meu dever como jornalista mostrar todas as conseqüências que uma guerra pode trazer”.

*Jornalista há 31 anos, foi editor de Fotografia do Correio Braziliense e repórter de Veja, IstoÉ e O Globo. Seu trabalho como fotógrafo já lhe rendeu vários prêmios nacionais e internacionais, como o Líbero Badaró, o Nikon Awards e o Abril de Fotojornalismo. Atualmente, é fotógrafo free lancer em Barcelona, onde co-edita a revista eletrônica sobre fotografia Pictura Pixel.

(Publicado no site Congresso em Foco)

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