Por Tulio Custódio
Abdias do Nascimento é com certeza um dos maiores nomes do ativismo político negro brasileiro. Sua longa trajetória como ativista, ator e diretor de teatro, escritor, poeta, artista, professor universitário nos EUA e Nigéria, político (deputado, secretário estadual, senador), dentre outras atividades é ímpar para qualquer pessoa que viveu quase todo o século XX. Não só impar pelo protagonismo, mas pela importância e amplitude de sua atuação.
Vamos retomar alguns dos principais passos em seus 97 anos de vida. Ex-militar (expulso do exército por insubordinação, por ter contestado e denunciado racismo na instituição), contador e economista de formação, nasceu em Franca em 1914. Passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nova Iorque, Buffalo, Ilé-Ifé (Nigéria), Dacar (Sénegal) - estes últimos em seus 13 anos de exílio - e por muitos e muitos outros lugares. Fixou por grande parte se sua vida residência no Rio de Janeiro, onde fundou o Teatro Experimental do Negro (conhecido como TEN) em 1944, importante grupo responsável não apenas pelo desenvolvimento do Teatro Negro brasileiro como, pelo que os estudiosos denominam e reconhecem, principal movimento do segundo momento do ativismo negro brasileiro.
No TEN, escreveu, dirigiu e atuou em diversas peças, além de lançar grandes atores negros que ainda hoje representam o (pouco reconhecido) corpo de artistas negros do país. Além das artes, se enveredou com paixão e intensidade no ativismo político negro. Desde os anos 1940, levantou sua voz como protagonista da luta pelos direitos do negro, pela integração real do negro e contra a discriminação racial. Junto com outros ativistas de seu tempo, como Aguinaldo Camargo, Ironides Rodrigues, Sebastião Rodrigues Alves e o grande sociólogo Guerreiro Ramos, o TEN pautou as principais demandas do ativismo político negro nos anos 40, 50 e 60, além de estabelecer diálogo com intelectuais da academia e políticos. Abdias soube atuar quando as lutas eram compartilhadas, mas também soube lutar quando precisava fazê-lo sozinho.
Isso aconteceu em seus anos de exílio, nos quais atuou como artista e professor (emérito, vale ressaltar) da Universidade do Estado de Nova Iorque em Buffalo. Além da residência nos EUA, passou por diversos países, participando de congresso e seminários internacionais, levando as questões da luta anti-racista do Brasil para uma plataforma internacional. Ativistas e intelectuais negros de países africanos, europeus e dos EUA nos anos 1970 foram espectadores de sua incansável luta e denúncia, que, mesmo impossibilitado de permanecer no Brasil por conta do regime ditatorial aqui instalado (que perseguiu ativistas políticos tratando-os como subversivos) continuou seu trabalho onde quer que estivesse.
No Brasil, ao voltar no início dos anos 1980, atuou em apoio aos novos movimentos negros, mas sua luta se fortificara em outro plano: na vida política, primeiro como deputado, depois secretário (primeiro do país em uma secretaria criada especialmente para atender demandas da questão racial) estadual e posteriormente como senador.
Se a guerra contra o racismo ainda não foi vencida, nas inúmeras batalhas que enfrentamos na história desse país no século XX, Nascimento indubitavelmente é um dos grandes contribuidores das vitórias. A implantação de ações afirmativas e lei contra discriminação racial são algumas delas, mas Nascimento representa muito mais que suas ações e conquistas: representa um modelo, um exemplo para os jovens brasileiros.
Abdias do Nascimento é um modelo do que podermos chamar de "intelectual total". Sua amplitude de atuação, na política, no ativismo, nas artes plásticas, nas letras, no teatro, em suma, na vida, é exemplo vivo e instigante de um homem que batalhou com todas as armas - e não forma poucas - que poderia em prol de uma causa: respeito e integração plena dos negros na sociedade brasileira. Esse modelo mostra a todos e todas que não apenas colhemos muito dos frutos da atuação de Abdias, como, ponto importante quando se discute acerca de ações afirmativas, temos uma figura de referência. E que referência!
Seu legado intelectual nos deixa uma reflexão sobre a identidade negra, uma negritude brasileira, e a importância de entender a questão racial em relação ao contexto da diáspora africana. Seu legado político nos deixa pautas importantíssimas que ainda guiam a atuação de ativistas e intelectuais, como a questão das ações afirmativas e de um aparato jurídico mais reforçado para assegurar punição aos crimes de racismo e discriminação. Seu legado enquanto pessoa deixa a imagem da pessoa amável, compreensiva, firme, crítica, que não se furtava de expressar suas bandeiras e opiniões mesmo diante de contextos bastante contrários.
O que fica, além do sentimento de perda por seu falecimento, é o orgulho de termos uma figura como Abdias na vida política brasileira. Como ativista, como intelectual, como negro, como brasileiro, como inspiração. Descanse em paz Abdias
Tulio Augusto S. Custódio, Bacharel em Ciências Sociais e História. Mestrando em Sociologia pela Universidade de São Paulo
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